Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

terça-feira, julho 29, 2008

Ofurô

Levou um tempo pra perceber que estava com febre, porque no inverno é sempre possível que o frio nos ossos seja legítimo. Mas tremia demais, sentia-se fraca demais, os olhos lacrimejavam demais, então ela achou - mesmo sem ter um termômetro por perto - que era febre mesmo, e dirigiu de volta pra casa pensando que deviam criar uma nova regra de trânsito proibindo pessoas febris de dirigir, porque o motorista febril delira, o vermelho do sinal o faz chorar, faróis na cara fazem seus olhos fecharem, quebra-molas lhe trituram os ossos e o resultado disso é não-bom. De qualquer forma, se proibissem a direção febril, seria engraçado ver blitz de trânsito se transformando em drive-thru de saúde, com policiais solícitos aferindo a temperatura e a pressão dos motoristas, e já que vão pedir pro contribuinte soprar no etilômetro, poderiam aproveitar para coletar sangue de todos para aumentar o cadastro nacional de doadores de sangue e medula. Todo mundo que tem uma carteira de habilitação válida já foi obrigado a decidir se doa ou não doa, não é? Então.

Já em casa, entrou imediatamente debaixo do chuveiro escaldante que, justo naquele dia frio, não estava nem tão escaldante assim. Sentiu o corpo relaxar, reservando-se ao direito febril de não se importar com o fim trágico que estava dando, ela mesma, à toda água potável do planeta. Mas foi pensar nisso, que logo pensou em outras formas de ficar quentinha sem gastar tanta água. Lembrou do ofurô daquele hotel na serra de Ibitipoca. Aquilo sim é que era água quente! Mas lembrou também que levou horas pra decidir se entraria ou não naquela banheira suspeita de madeira. Se a Vigilância Sanitária não permite que se corte laranjas em tábuas de madeira porque é nojento, imagina o quão nojenta deve ser uma banheira de madeira onde pessoas estranhas, estranhas o bastante para querer ir pra Ibitipoca, muito possivelmente trocam vários tipos de fluidos repletos de bactérias amiguinhas do calor (ah, porque algumas bactérias adoram um calorzinho!). Acabou entrando no ofurô, mas foi de tampax mesmo sem estar menstruada, apenas para sua proteção mental. E agora, lembrando da sensação ofurística vasodilatadora daquele dia feliz, tudo o que ela queria era um ofurô. Já tinha uma hora que estava no banho, então entrou numa camisola de flanela e foi delirar sob 3 edredons na cama.


O ofurô era realmente tudo o que ela precisava naquele momento: o aspecto suspeito da madeira micróbio-friendly estava disfarçado pelas pétalas de rosas vermelhas ligeiramente orvalhadas e pelo óleo essencial de canela, que dava uma nota de charme àquela penumbra de velas num vale de eucaliptos. Ah, os eucaliptos! Não aquela essência barata de sauna de academia, mas eucalipto de verdade, daqueles que ficam prateados em noite de lua cheia e limpam os pulmões da gente da cidade. Envolvida por cheiros e lembranças, deixou seu roupão felpudo cair e entrou no ofurô. Sentia-se um comprimido efervescente de vitamina C em um copo d'água muito quente, e em poucos segundos percebeu que todo o seu corpo cedia e a dor passava, e onde havia frio agora existia apenas conforto. O frio é o mal do mundo: inadmissível pensar que alguns casos de febre são tratados com gêlo. É uma solução muito hostil para quem apenas quer um pouco de calor humano. O ofurô é o calor humano em forma de banho.

O avançado estado de relaxamento foi interrompido pelo alerta de sede. Tateou em volta e encontrou uma moringa e um copo d'água. Bebeu meio litro. E voltou a relaxar.

O avançado estado de relaxamento foi quase interrompido pela vontade de fazer xixi. Olhou eu volta, estava cercada de velas e eucaliptos. Ninguém iria reparar se ela fizesse xixi ali mesmo, no ofurô. Parecia justo, já que ela podia deixar ali qualquer tipo de fluido, e o xixi não é exatamente o líquido mais contaminante que sai do nosso corpo. Em estágio de semi-relaxamento febril, levou o xixi ao banco dos réus e tirou-o de lá vitorioso, orgulhoso de sua inocência, até mesmo um pouco eufórico pra sair e gritar pro mundo que há coisas piores por aí que fazer xixi num ofurô. Então ela deixou. E sentiu um calorzinho gostoso e uma nova onda de relaxamento.

De repente, frio. Tudo o que é bom acaba, e o ofurô ficou frio. Tateou em volta pra ver se encontrava algum telefone pra falar com o pessoal da pousada, mas Ibitipoca não era pra tanto. Quisesse alguém falar com o pessoal da recepção, que andasse até lá, sob rajadas de vento gelado e frios que triturariam a alma dos mais valentes. E o frio aumentava. O frio molhado é o pior de todos. Acabou-se o relaxamento, acabou-se o cheirinho de eucalipto, acabou-se o que era doce. O telefone toca. Ué, mas aqui não tem telefone. Mas o telefone toca, toca, toca.

- Alô?
- Filha, você não ligou hoje, está tudo bem?

Não estava tudo bem. Nunca está tudo bem quando se faz xixi na cama depois dos 2 anos de idade. Mas fica o alerta: pessoas normais fazem xixi em ofurô. Pense nisso antes de entrar em um.