Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

quarta-feira, agosto 06, 2008

O grito

No lugar onde eu moro tem um jardim tão grande e tão protegido pelo IBAMA que nós, moradores, o chamamos de bosque. Pois nesse bosque, além de muitas árvores, micos, gambás, gatos e pássaros, há também muitas curvas e alguns trechos ermos onde as câmeras de vigilância não alcançam, o que faz com que toda mãe recomende a seus filhos: "Olha, o Lobo Mau está à solta no bosque. Não quero vocês por lá sozinhos!" Como eu já passei da idade de acreditar em Lobo Mau ou em qualquer outro tipo de comunista que come criancinha, eu nunca me preocupo com os perigos da floresta quando passeio por lá com a Lála ou algum outro peludo que passe por aqui me visitando. Até que um dia...

Era início de noite de domingo quando eu ouvi um grito vindo do bosque. Não era um gritinho curto e rápido de susto banal por sapo ou barata: era um grito de mulher longo, rascante, tenebroso: um verdadeiro grito de terror, daqueles que arrancam nossa alma do corpo e fazem o coração disparar. Olhei pela janela, que dá vista pro bosque, e tentei identificar de onde vinha o grito, já me arrumando pra descer correndo e acudir a vítima. O que eu poderia fazer por ela, eu não sei, sobretudo depois de ela ter passado por experiência tão trágica e horrenda, que tinha arrancado de suas entranhas o pior grito de horror que eu ouvira em toda a minha vida. À janela, vi que uma pá de outros moradores teve a mesmíssima idéia, e portanto já havia, por causa do grito, cerca de 20 homens correndo bosque acima, alguns com lanternas, outros com pedaços de pau. Fiquei na janela, respiração ofegante, aguardando notícias. Fui bem covarde, confesso, mas em minha mente só se passavam imagens de terror absoluto - cabeças decepadas, corpos seccionados por serras elétricas, cadáveres empilhados - e quanto mais eu pensava no que tinha causado o grito e por que o grito tinha parado tão abruptamente depois d'a mulher gritar "NÃÃÃÃÃOOOO!!!", eu realmente me sentia pequena demais para dar qualquer tipo de amparo à tragédia humana.

Quando os seguranças chegaram, poucos minutos depois, moradores gritavam de suas janelas, desesperados: "Corre, meu filho, por ali! Nesse passo ela vai estar morta quando você chegar!", e tudo isso ia me apavorando ainda mais: "meu deus, mas o que será que houve? nunca aconteceu tragédia nesse bosque, e agora isto!". Continuei roendo as unhas da janela para saber o que tinha acontecido, mas nada acontecia. Cerca de 50 pessoas tinham convergido para o foco do grito, e agora elas se afastavam tranqüilamente, algumas rindo, outras cabisbaixas, mas ninguém parecia espelhar o motivo do horror. O alerta vermelho que se acendera em mim pouco antes já tinha se apagado, e de repente eu me senti muito fora de lugar ali, pendurada na janela que nem uma matilde. O domingo acabou e eu dormi sem saber mais nada sobre o grito. Dormi com aquilo na cabeça, fertilizando toda sorte de pesadelo.

No dia seguinte, quando saí pro trabalho, perguntei a um segurança do condomínio se ele sabia me informar o que tinha acontecido no bosque na véspera, na hora do grito. Ele pareceu pensar um pouco, como se vasculhasse a memória, e disse:
- Ah, o grito. Sei. Por volta das 19h, né? Foi uma mulher que estava passeando com seu cachorrinho e reagiu a gritos quando encontrou dois labradores passeando soltos, sem coleira.

Fiquei muito decepcionada, confesso, mas não queria dar na pinta de que estava esperando uma manchete de O Povo em minha própria morada. Então eu pigarreei, tentei disfarçar minha cara de "SÓ ISSO?!?"e perguntei, muito séria:
- E os donos dos labradores? Colocaram os cães na coleira?
- Ah, sim, imediatamente. Quando o segurança chegou, já estavam todos na guia.
- Ah que ótimo. Então o grito resolveu o problema.
- Com certeza.

***

Moral da estória: às vezes um simples grito poupa muito verbo e resolve problemas instantaneamente.

PS importantíssimo: dedico essa estória ao meu irmão Ilton, que está com o grito entalado na garganta há um tempo e não sabe o que fazer com isso.