Eu choro, tu choras, todo mundo chora
Foi difícil acordar naquela quarta-feira às 4h30. Embora eu tivesse dormido sete boas horas de sono, estava escuro e frio lá fora, e minha cama estava tão quentinha que eu chorei um pouquinho pra me levantar. "TPM", pensei. E combati meu choro fácil com músicas alegres e óleo essencial de rosa gerânio, que é muito bom pra curar choro frouxo.
O primeiro cliente no consultório me traz uma cachorrinha preta de bigodes brancos. "Qual a idade dela?", pergunto. "14 anos, doutora." Eu baixo os olhos para anotar e quando olho de volta pra minha interlocutora, uma senhorinha pequena e claudicante duns 70 anos, a encontro chorando com as mãos no rosto.
- Meu Deus, que choro é esse, o que houve?
- Doutora... é que ela tem 14 anos.... A senhora acha que ela ainda vai viver muito?
E eu, que estava com o choro frouxo, tive de ajeitar o saco, puxar um pigarro lá do fundo do peito e falar um pouco grosso com ela, pra minha voz não sair embargada:
- Ora, ora minha senhora! Bem se vê que essa mocinha tem vida boa e ainda vai viver muito por isso, sobretudo agora, que a gente vai fazer um check-up completo dela pra não deixar nada de fora. Só não quero te ver aqui daqui a 10 anos me perguntando a mesma coisa, porque aí é capaz de eu nem estar viva pra poder te responder.
Quando eu pensei que finalmente estava imune ao choro naquela quarta-feira chorosa, entra outra mulher com um cachorrinho com um ferimento na cauda. Ponho-o na mesa para examinar e acabo tendo de amordaçar o peludo, porque ele sentia tanta dor naquelas perebinhas que decidiu que não ia me deixar olhar o que estava acontecendo. Quando olho pra dona pra dizer que era só uma dermatite úmida aguda, vejo-a afogada em lágrimas. Pergunto por que ela está chorando tanto, e ela me diz, soluçando, que não suporta ver seu bicho sofrer, que ela prefiria que lhe amputassem um braço, mas que não queria ver seu bichinho sofrer, e aí eu me lembro de quando meus pais foram a Miguel Pereira buscar o Povo porque o caseiro disse que o encontrou naquela manhã com um rasgo enorme no corpo, como se tivesse sido esfaqueado, e meus pais subiram a serra em 40 minutos, quando a viagem normalmente dura 1h40, e minha mãe me ligou de lá passando mal, aos prantos, dizendo que a perna estava pendurada por um fiapo de pele, e eu passei mal daqui, e a gente nem se falava mais ao telefone, a gente gritava, e eu falei que era pra eles correrem com o Povo pro Jardim Botânico, que eu ia acionar o Rubinho, o melhor cirurgião veterinário do planeta Terra pra mim, pra fazer a amputação do membro dependurado do Povo, e entre as ligações que eu não parei de fazer pra falar com o Rubinho, eu tinha vontade de fazer xixi e vomitar, sentia que o mundo tinha despencado em cima de mim, meu cachorro foi esfaqueado, caralho, o ser humano é foda, eu tenho vergonha de ser gente, coitado do meu peludo, meu Deus, o que será que ele está sentindo, será que está sentindo a dor que eu estou sentindo, e aí eu achava que ia desmaiar de tanta dor, mas a dor não era minha, era do meu cachorro e da minha mãe, e aí eu finalmente falei com o Rubinho e tomei o primeiro choque de realidade do dia quando ele disse que só estaria no Rio dali a muitas horas, à noite, e que eu ligasse pra ele pra confirmar a amputação assim que visse meu cão, porque ele teria de me encaixar lá pelo meio da madrugada. OK, verei o estrago primeiro, isso eu posso fazer. E quando finalmente vi o meu Povo Brasileiro, depois de ter passado a última hora acompanhando o deslocamento dos meus pais pela estrada, orientando-os a verificar os sinais vitais do cão com medo d'ele morrer de choque hipovolêmico pelo caminho, abri a boca a chorar, mas desta vez de alívio: o meu galgo só tinha um grande corte na pele. A pata não estava nada dependurada por um fiapo, isso foi só uma fantasia da minha mãe que olhou praquela coisa feia de relance e imaginou todo o resto. Levei-o ao IJV, suturamos a pele e fomos felizes para sempre. Mas meu pós-operatório foi complicado: tive de ligar pro Rubinho, que vergonha, pra dizer que a amputação era só uma sutura de pele e que estava tudo bem, desculpe ter sido tão pentelha e neurótica, mas entenda: eu também sou dona, e como todo dono de cachorro, sou maluca. Sorry.
Então entreguei um lenço pra moça que chorava pela dor de seu cão e falei: "Tome, pode chorar. Ele vai ficar bom, mas até lá, pode chorar, que chorar não faz mal a ninguém." Quando ela me agradeceu por ter autorizado seu choro, pôs-se a chorar ainda mais, e aí eu tive de retomar a situação e dizer: "Agora chega, já chorou sua cota, se chorar mais, vai ter de pagar outra consulta."
Ela se controlou, eu fiz a receita e me despedi deles pensando que amar é ter um coração batendo fora do corpo, sentindo a dor do outro e sendo piegas pra caralho, porque, se não fosse assim, não seria amor.
Foi pensar isso que eu chorei entre uma consulta e outra, claro, mas TPM é pra isso mesmo: é pra drenar as retenções de líquidos, porque só dois rins não dão conta de tanto mar. Eu deveria ter nascido com 4 rins, mas como não nasci, choro mais do que a média pra expurgar os fluidos amorosos que tanto me afogam.
O primeiro cliente no consultório me traz uma cachorrinha preta de bigodes brancos. "Qual a idade dela?", pergunto. "14 anos, doutora." Eu baixo os olhos para anotar e quando olho de volta pra minha interlocutora, uma senhorinha pequena e claudicante duns 70 anos, a encontro chorando com as mãos no rosto.
- Meu Deus, que choro é esse, o que houve?
- Doutora... é que ela tem 14 anos.... A senhora acha que ela ainda vai viver muito?
E eu, que estava com o choro frouxo, tive de ajeitar o saco, puxar um pigarro lá do fundo do peito e falar um pouco grosso com ela, pra minha voz não sair embargada:
- Ora, ora minha senhora! Bem se vê que essa mocinha tem vida boa e ainda vai viver muito por isso, sobretudo agora, que a gente vai fazer um check-up completo dela pra não deixar nada de fora. Só não quero te ver aqui daqui a 10 anos me perguntando a mesma coisa, porque aí é capaz de eu nem estar viva pra poder te responder.
Quando eu pensei que finalmente estava imune ao choro naquela quarta-feira chorosa, entra outra mulher com um cachorrinho com um ferimento na cauda. Ponho-o na mesa para examinar e acabo tendo de amordaçar o peludo, porque ele sentia tanta dor naquelas perebinhas que decidiu que não ia me deixar olhar o que estava acontecendo. Quando olho pra dona pra dizer que era só uma dermatite úmida aguda, vejo-a afogada em lágrimas. Pergunto por que ela está chorando tanto, e ela me diz, soluçando, que não suporta ver seu bicho sofrer, que ela prefiria que lhe amputassem um braço, mas que não queria ver seu bichinho sofrer, e aí eu me lembro de quando meus pais foram a Miguel Pereira buscar o Povo porque o caseiro disse que o encontrou naquela manhã com um rasgo enorme no corpo, como se tivesse sido esfaqueado, e meus pais subiram a serra em 40 minutos, quando a viagem normalmente dura 1h40, e minha mãe me ligou de lá passando mal, aos prantos, dizendo que a perna estava pendurada por um fiapo de pele, e eu passei mal daqui, e a gente nem se falava mais ao telefone, a gente gritava, e eu falei que era pra eles correrem com o Povo pro Jardim Botânico, que eu ia acionar o Rubinho, o melhor cirurgião veterinário do planeta Terra pra mim, pra fazer a amputação do membro dependurado do Povo, e entre as ligações que eu não parei de fazer pra falar com o Rubinho, eu tinha vontade de fazer xixi e vomitar, sentia que o mundo tinha despencado em cima de mim, meu cachorro foi esfaqueado, caralho, o ser humano é foda, eu tenho vergonha de ser gente, coitado do meu peludo, meu Deus, o que será que ele está sentindo, será que está sentindo a dor que eu estou sentindo, e aí eu achava que ia desmaiar de tanta dor, mas a dor não era minha, era do meu cachorro e da minha mãe, e aí eu finalmente falei com o Rubinho e tomei o primeiro choque de realidade do dia quando ele disse que só estaria no Rio dali a muitas horas, à noite, e que eu ligasse pra ele pra confirmar a amputação assim que visse meu cão, porque ele teria de me encaixar lá pelo meio da madrugada. OK, verei o estrago primeiro, isso eu posso fazer. E quando finalmente vi o meu Povo Brasileiro, depois de ter passado a última hora acompanhando o deslocamento dos meus pais pela estrada, orientando-os a verificar os sinais vitais do cão com medo d'ele morrer de choque hipovolêmico pelo caminho, abri a boca a chorar, mas desta vez de alívio: o meu galgo só tinha um grande corte na pele. A pata não estava nada dependurada por um fiapo, isso foi só uma fantasia da minha mãe que olhou praquela coisa feia de relance e imaginou todo o resto. Levei-o ao IJV, suturamos a pele e fomos felizes para sempre. Mas meu pós-operatório foi complicado: tive de ligar pro Rubinho, que vergonha, pra dizer que a amputação era só uma sutura de pele e que estava tudo bem, desculpe ter sido tão pentelha e neurótica, mas entenda: eu também sou dona, e como todo dono de cachorro, sou maluca. Sorry.
Então entreguei um lenço pra moça que chorava pela dor de seu cão e falei: "Tome, pode chorar. Ele vai ficar bom, mas até lá, pode chorar, que chorar não faz mal a ninguém." Quando ela me agradeceu por ter autorizado seu choro, pôs-se a chorar ainda mais, e aí eu tive de retomar a situação e dizer: "Agora chega, já chorou sua cota, se chorar mais, vai ter de pagar outra consulta."
Ela se controlou, eu fiz a receita e me despedi deles pensando que amar é ter um coração batendo fora do corpo, sentindo a dor do outro e sendo piegas pra caralho, porque, se não fosse assim, não seria amor.
Foi pensar isso que eu chorei entre uma consulta e outra, claro, mas TPM é pra isso mesmo: é pra drenar as retenções de líquidos, porque só dois rins não dão conta de tanto mar. Eu deveria ter nascido com 4 rins, mas como não nasci, choro mais do que a média pra expurgar os fluidos amorosos que tanto me afogam.
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