Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

quarta-feira, outubro 04, 2006

Um conto baratal (para o leitor anônimo)


Porque hoje é dia de São Francisco de Assis; porque muita gente associa a data aos veterinários, que cuidam dos bichos; porque eu sou veterinária; porque meu leitor anônimo favorito insinuou que barata é bicho, eis aqui um esclarecimento: baratas não são seres dignos de nossa simpatia e não se enquadram na categoria "bichos". Na minha taxonomia, haveria reino vegetal, animal e bestial. Baratas seriam, então, classificadas como monstros primitivos cuja função primária na Terra é espalhar o asco e o pavor e tornar homens matadores de baratas em heróis domésticos.

Tudo isto posto, relato um episódio recente de pânico doméstico envolvendo duas escovas de dente, uma barata e eu.

Tudo começou no último sábado à noite, quando estava sozinha em casa. Estava me preparando para dormir, acendi a luz do banheiro e, para meu choque-horror-pânico, localizei um inseto baratiforme, tão grande quanto um camundongo pequeno, a exatos 6 azulejos de distância da minha testa, na lateral do espelho. Eu tive tempo de contar os azulejos porque fiquei paralisada de pavor, com medo de me mexer e de provocar o deslocamento do monstro, cujas asas e patas peludas pareciam ansiar por tocar minha pele limpa e sana. Prendendo a respiração, dei uma ré e fechei lentamente a porta do banheiro para oferecer ao monstro a privacidade necessária à fuga por algum ralo. Entrei em meu quarto, coloquei uma toalha bloqueando a fresta sob a porta trancada e deitei na cama, inconformada por ter sido obrigada a dormir sem escovar os dentes por aquele réptil insetiforme nefasto. Tomei meu tarja preto para medo e dormi humilhada, pensando em interfonar pro porteiro, mas achando que não havia razão para tanto, pois a barata seria razoável o bastante para ir embora sozinha. Eventualmente.

No dia seguinte pela manhã, nada da barata. Pensei: isso é coisa de praga noturna!, esse verme gosmento deve estar escondido por aí nalgum canto. E passei o dia na expectativa ruim de que a noite chegasse e, com ela, a barata. Durante todo o dia, tive medo de entrar no banheiro e senti uma raiva incontrolável de estar sendo oprimida, em minha própria casa, por um inseto cascudo nojento do tamanho de um filhote de gato.

Na noite de domindo, quando fui escovar os dentes, quem eu encontro? A coleguinha do Kafka, ainda mais audaz que na noite anterior: dessa vez, estava sobre o espelho, a 10 cm da pia. Congelei, prendi a respiração, saí de ré e já ia repetir meu ritual de fuga, quando senti uma revolta profunda contra aquela cucaracha cascorenta, tão grande quanto um Chiuaua, me impondo toque de recolher e me privando do direito de escovar os dentes antes de dormir. Aí, não teve jeito: enchi os pulmões de ar, peguei meu chinelo, mirei na besta, atirei e saí correndo. Corri tanto, que teria quebrado o record mundial de velocidade em apartamentos pequenos, se a modalidade existisse. Meu coração pulava na boca e eu só pensava uma coisa: quem vai remover o cadáver do monstro? Porque eu não sou dessas pessoas que freqüentam o mesmo banheiro que uma barata, estando ela morta ou viva.

Levei três minutos pra me acalmar e voltar ao banheiro a fim de localizar o corpo, que tinha, para o meu horror, desaparecido. Podia sentir o suspense hitchcockiano invadir o ambiente e a iminência do inseto pular em meu cabelo, num gesto de vingança. Revistei o banheiro a partir do corredor e acabei concluindo que a barata só podia ter caído dentro do meu porta-escova-de-dente. E lá estava o monstro!, tocando com suas patas, tão peludas quanto um Shi Tzu, e sua casca, tão gosmenta quanto teto de cozinha de boteco, minhas duas escovas de dente. Alguma coisa nela, não sei se pata ou antena, ainda se mexia então, por precaução, levei o porta-escovas com todo o cuidado para dentro da pia e abri a torneira para matar o inseto por afogamento. Dormi sem escovar os dentes, torcendo pra barata não saber nadar.

No dia seguinte, meu valente pai se livrou do cadáver afogado do monstrengo, que parecia ter encolhido consideravelmente com o óbito. Comprei uma escova de dentes nova e desinfetei com cloro o porta-escovas.

Se na China tem gente que come barata, só tenho uma coisa a dizer: cada um tem a culinária que merece. Eu afogo baratas.