O quarto passageiro
Não é todo dia que o 284 (Praça Seca - Praça Tiradentes) está vazio. Hoje, por acaso, estava: eu, trocador, motorista e meia dúzia de passageiros, cada qual em sua janela solitária. No terceiro ponto de ônibus, sobe um PM armado até os dentes e vai perguntando pra fileira de homens à minha esquerda: "Onde você mora, cidadão? Tá vindo de onde?". No quarto passageiro (faltavam dois, três comigo, mas a essa altura até eu já sabia que o interesse do policial era apenas por homens pardos, tomadores regulares do 284 e moradores de um determinado lugar), o PM teve de repetir a pergunta; e ela saiu assim, meio tensa, meio gritada, meio com a mão no gatilho: "Cidadão, estou perguntando com educação: tá vindo de onde e tá indo pra onde?". O quarto passageiro não gostou nada da elevação do tom de voz do seu puliça e, de repente, enquanto o quarto cidadão se indignava, eu imaginei essa mesma cena -- "Qual é seu signo e pra que time torce?" -- interpretada pelo Evandro Mesquita em um clipe Ploc.
Meu pensamento aterriza com os gritos do PM e, nessa hora, eu tenho certeza que ouvi um clique metálico que podia ser (ou não!) uma arma sendo engatilhada. Calculo a distância do quarto passageiro pra mim e me imagino coberta por seus miolos, caso eles fossem estourados à queima roupa pelo policial destemperado. Um outro PM sobe pela frente, gritando, outro por trás e, ato reflexo, eu levanto um dedinho, como quem aguarda o olhar atento da professora primária para poder falar uma coisa. O destemperado me olha e grita:
- O quê?!?
- Moço... será que dá pr'eu saltar aqui?
- Onde você mora?
- Botafogo.
- De onde você vem?
- Do hospital veterinário.
Vejo na cara do destemperado um breve esforço pra não sorrir ou talvez até mesmo gargalhar do meu cagacinho precocemente manifestado. Afinal, ele deve ter entrado naquele 284 só pra aterrorizar meia dúzia de contribuintes em um fim de tarde enfadonho. Evandro Mesquita me volta à cabeça com os solos de: "Blitz, documentos! Ué... só temos instrumentos... Ei, rapaz, que que cê faz?". E então eu arremato, batendo cílios, no mesmo tempo do solo de baixo dessa parte da música:
- E sou canceriana, e torço pelo Flamengo. Agora, não me leva a mal, moço... mas será que eu posso saltar aqui?
Minha gigantesca mochila vermelha de 3 dias gritava: "reviste-me!". Eu fazia um esforço mental incrível pra não fugir enquanto tentava me lembrar do que tinha dentro dela, mas só me ocorriam pensamentos adolescentes de "não se deixe revistar por nada neste mundo! Morra se necessário, mas não deixe policial algum te revistar porque será o fim da sua vida como você a sonhou". Àquele momento -- e eu estava tão tensa que não podia perceber --, eu flertava com um policial destemperado pra saltar de um 284 -- sabe-se Deus onde!, no cu de São Cristóvão! -- só porque senti um medo irrefreável de virar estatística ou testemunha de estatística, o que dá no mesmo, porque sempre se morre um pouco quando alguém morre ao seu lado.
E o policial, seduzido, me respondeu, piscando de volta:
- Pode ficar, dona: tá tudo limpeza nesse ônibus.
Sorte minha não estar com a mochila de 15 anos atrás. Sorte minha não ter falado a primeira coisa que me veio à cabeça:
- Por que você não me revista? Por que não revista alguém do seu tamanho?!?
Querendo dizer: alguém tão microscópico assim, do seu tamanho. Eu.
Meu pensamento aterriza com os gritos do PM e, nessa hora, eu tenho certeza que ouvi um clique metálico que podia ser (ou não!) uma arma sendo engatilhada. Calculo a distância do quarto passageiro pra mim e me imagino coberta por seus miolos, caso eles fossem estourados à queima roupa pelo policial destemperado. Um outro PM sobe pela frente, gritando, outro por trás e, ato reflexo, eu levanto um dedinho, como quem aguarda o olhar atento da professora primária para poder falar uma coisa. O destemperado me olha e grita:
- O quê?!?
- Moço... será que dá pr'eu saltar aqui?
- Onde você mora?
- Botafogo.
- De onde você vem?
- Do hospital veterinário.
Vejo na cara do destemperado um breve esforço pra não sorrir ou talvez até mesmo gargalhar do meu cagacinho precocemente manifestado. Afinal, ele deve ter entrado naquele 284 só pra aterrorizar meia dúzia de contribuintes em um fim de tarde enfadonho. Evandro Mesquita me volta à cabeça com os solos de: "Blitz, documentos! Ué... só temos instrumentos... Ei, rapaz, que que cê faz?". E então eu arremato, batendo cílios, no mesmo tempo do solo de baixo dessa parte da música:
- E sou canceriana, e torço pelo Flamengo. Agora, não me leva a mal, moço... mas será que eu posso saltar aqui?
Minha gigantesca mochila vermelha de 3 dias gritava: "reviste-me!". Eu fazia um esforço mental incrível pra não fugir enquanto tentava me lembrar do que tinha dentro dela, mas só me ocorriam pensamentos adolescentes de "não se deixe revistar por nada neste mundo! Morra se necessário, mas não deixe policial algum te revistar porque será o fim da sua vida como você a sonhou". Àquele momento -- e eu estava tão tensa que não podia perceber --, eu flertava com um policial destemperado pra saltar de um 284 -- sabe-se Deus onde!, no cu de São Cristóvão! -- só porque senti um medo irrefreável de virar estatística ou testemunha de estatística, o que dá no mesmo, porque sempre se morre um pouco quando alguém morre ao seu lado.
E o policial, seduzido, me respondeu, piscando de volta:
- Pode ficar, dona: tá tudo limpeza nesse ônibus.
Sorte minha não estar com a mochila de 15 anos atrás. Sorte minha não ter falado a primeira coisa que me veio à cabeça:
- Por que você não me revista? Por que não revista alguém do seu tamanho?!?
Querendo dizer: alguém tão microscópico assim, do seu tamanho. Eu.
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