Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

sexta-feira, junho 15, 2007

O dia em que envergonhei meus pais.


Na verdade, já envergonhei meus pais muitas vezes, muitas das quais esqueci propositalmente para poder continuar vivendo.

A primeira vergonha (não deletada) que fiz meus pais passarem foi em Brasília, na década de setenta. Antes de contar este episódio, preciso explicar quem eram minhas companhias naquela época. Em posse desse importante histórico, espero sinceramente que vocês possam me perdoar pela vergonha que fiz minha famiglia passar e que, provavelmente, culminou com nossa retirada estratégica pro Rio de Janeiro, embora meus pais até hoje aleguem que a mudança se deu por motivos médicos (diziam que minha asma piorava no clima árido da capital federal).

Eu tinha uns sete ou oito anos, minha irmã uns cinco ou seis, e nossos únicos amigos na quadra eram os renegados filhos de um viúvo mineiro: o pirralho Emerson e sua irmã Zilnemara, uma menina de minha idade que tinha o péssimo vício de me chamar de "Coisinha", na contramão total de minha delicadeza, que me compelia a chamá-la simplesmente de "Zilne", já que Zilnemara, todos sabem -- até as crianças! --, é foda.

Zilne e Emerson eram uns capetinhas atentados e soltos na vida, e vira e mexe nos metiam em sérios apuros. Não o faziam por mal: na minha infantil avaliação, suas diabruras estavam relacionadas, pura e simplesmente, à falta de uma boa mãe, com um bom chinelo em riste. O pai, obviamente, e como acontece em todo desenho Disney, era um ausente que só se vê de costas e dos joelhos pra baixo, passando rapidamente de casa pro trabalho e do trabalho pra casa. Talvez por causa disto, porque o atímico viúvo não deixava pros filhos nem um centavo emergencial, o tema central de nossas brincadeiras de criança era a arrecadação monetária. Lembro da gente pescando moedas em ralos com ímãs e de nossos bazares de gibis e pilhas velhas congeladas, mas só hoje me ocorreu que era com esse dinheiro -- e não com a mesada do vovô, cujo troco minha mãe guardava e não acabava jamais -- que nós quatro comprávamos balas, Mastiguinhas em farmácias e Transfers e figurinhas em bancas quase todos os dias.

Em Brasília, naquela época, todas as superquadras tinham duas escolas públicas: um Jardim de Infância e uma que outrora se chamava Escola Primária, mas que hoje se chama algo que eu não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Na frente de cada uma, tinha sempre um pipoqueiro ou um "moço da Kibon" com seu carrinho ornado por guarda-sol e equipado com gelo seco, uma das sete maravilhas da ciência pras crianças. Éramos clientes fiéis do moço da Kibon e cansamos de trocar sucessivamente palitinhos premiados por brindes e picolés in loco. Sempre nos demos bem com o moço da Kibon, até o dia em que a Zilne -- sempre ela! -- sugeriu uma ousadia: um assalto ao reservatório de picolés.

O plano era bastante elaborado para criaturas de nossa idade, mas isso não era lá de se admirar, pois em Brasília as crianças crescem com uma mente bastante aberta para o crime, sobretudo os do colarinho branco. Esperaríamos a chegada do moço com seu carrinho e executaríamos nosso plano antes do horário da saída escolar, quando a movimentação era grande no local. Normalmente, o moço da Kibon ficava sozinho na praça por uns cinco minutos entre sua chegada e o início da romaria das mães à escola. A Zilne, que era a mais descarada, o abordaria aos prantos, pedindo ajuda porque seu irmãozinho estava ferido e possivelmente fraturado sob o pé de ingá mais próximo (e ainda assim distante); o irmãozinho fingiria estar machucado para que o resto idiota da equipe (eu e minha irmã, no caso) cumprisse o plano; enquanto o moço da Kibon estivesse longe do carrinho, eu abriria a tampa, daria pé-pé pra minha irmã subir, fuçar lá dentro e pescar dois picolés de uva e dois Chicabons, a conta justa do crime de nossa quadrilha.

Seria tudo perfeito se minha irmã não fosse incontinente (urinária) e, desde o início da operação, não tivesse começado a (se mijar de) rir. Para que aquela bunda mijada não me encostasse, eu tive de soltá-la com os pezinhos pro ar incontáveis vezes, e quando o moço da Kibon voltou, ele deu de cara com uma bunda mijada implantada em seu reservatório de gelo seco. Gritou palavras de baixo calão e veio correndo, pesada e ameaçadoramente, em nossa direção. Estapeei a bunda mijada, apressei minha irmã, icei-a pelos pés até lhe arrancar um dos congas, e corremos o quanto pudemos até a segurança de nosso lar. Minutos depois, me liga a Zilnemara:
-- Conseguiu pegar tudo?
-- Sim. A Samantha pegou tudo.

Na verdade, quando a Zilne perguntou "tudo", ela se referia aos quatro picolés do plano original. Acontece que, no nervoso da fuga, minha irmã acabou limpando o reservatório do moço da Kibon: rapou tudo até o tacho, mas tudo mesmo. Tínhamos uns vinte picolés de sabores jamais experimentados em nosso poder. Zilne ficou chocada quando eu contei:
-- Livre-se disso! Não podemos mais nos falar porque vocês estão ferradas agora. Não tenho nada a ver com isso. Tchau.

Liguei pra minha mãe, mas como naquela época não havia celular e ela não estava em nenhum dos seus dois empregos, só me restou esperar pra saber o grande castigo que me aguardava. E, já que eu teria de esperar mesmo, sentei com minha irmã na frente da TV e comemos todos os picolés distraidamente.

Minha mãe chegou pouco antes de nossa campainha ser espancada por uma matilha de crianças rivais da quadra que nunca foram minhas amigas de verdade: uma maneta (vítima da talidomida), uma gordinha (vítima do Jão-jão, o primeiro fastfood de Brasília), uma feínha (vítima da genética), uma chatinha (vítima da escola católica) e uma outra, irritantemente penteadinha, que uma vez soltou uma lombriga enorme na privada de meu banheiro, o que me fez passar a vida achando que algumas pessoas só se penteiam, em verdade, para disfarçar que são um criatório fervilhante de nematódeos. Pois essa matilha foi à minha casa -- ora, que desplante! -- avisar minha mãe que eu e minha irmã tínhamos roubado todos os picolés do moço da Kibon. Minha mãe passou os olhos das vítimas do cerrado pra gente, no sofá: nossa cara e nossas mãos lambuzadas de picolé de uva, chocolate e coco não pareciam desmentir as criancinhas hediondas naquela situação "O Povo contra Frankestein". Mamãe manteve a porta aberta, passou a mão em seu chinelo e, na frente daquelas criancinhas hediondas que eu odiava mais que tudo na vida, eu e minha irmã ganhamos uma chinelada moral (aquele tipo de chinelada que só dói conceitualmente, sobretudo na frente de uma platéia indigna); depois, fomos obrigadas a descer com dinheiro pra pagar o moço da Kibon pelo seu estoque roubado. Atrás de nós, O Povo contra Frankstein ia fazendo coro de "ensa, ensa, ensa, o crime não compensa", "taca pedra, joga bosta na Geni" e essas coisas nada gentis que se diz a uma pessoa na rampa da guilhotina. Da janela de seu apartamento, Zilne e Emerson riam de nosso calvário.

Não preciso dizer que nunca mais fomos amigos daqueles semiórfãos vigaristas, mas isto ocorreria em pouquíssimo tempo de qualquer forma, pois, como disse, o assalto ao trem pagador da Kibon culminou com nosso exílio definitivo do DF pro RJ. Dizem as más línguas que o Presidente Figueiredo tomou conhecimento do caso através de uma redação escolar oriunda do Colégio Santa Rosa de Lima, o que teria catalizado a transferência de meus pais pra cá como forma de controlar a criminalidade crescente no Planalto Central.

Zilnemara e seu comparsa nunca foram pegos, e ninguém acreditou na gente quando dissemos que os semiórfãos eram os mentores do assalto. Nunca algum adulto poderia acreditar que aquelas crianças que ainda sofriam a perda da progenitora poderiam se engajar na prática de qualquer ato ilício, sob a pena católico-cristã de que sua falecida mãezinha ardesse no fogo do inferno.

***

Sei que envergonhei meus pais naquele dia. Tenho evitado tocar neste assunto há quase trinta anos, até mesmo nas sessões mais catárticas de psicanálise, pois é muito triste um filho envergonhar um pai, mas acho que filhos adultos só envergonham os pais de verdade quando se tornam Renan Calheiros, irmãos Cravinho ou traficantes.

Hoje, porém, pra não perder o hábito, dei uma envergonhadinha nos meus pais pra que eles jamais esqueçam da sensação: cheguei em casa com uma sacola da Zara na mão. Minha mãe, que sabe dos nós em pingo d'água que tenho dado pra tentar equilibrar minhas finanças, levou a mão à testa dizendo: "Meu Deus, como você é perdulária! Já foi às compras!" Então, para tranquilizá-la, mas já planejando meu ato, respondi:
- Mãe, não é o que parece: não andei fazendo compras. Esta peça eu ganhei do Nelson, um leitor de meu blog que se apiedou de minha bancarrota financeira e resolveu contribuir com um agasalho para me manter aquecida no inverno.

Ela se riu, achando que eu, depois de velha, tinha dado de mentir. Fazendo-me de magoada por ter minha sinceridade questionada, mostrei a seguinte troca de mensagens entre o Nelson e eu. Minha mãe leu, pálida, meu apelo público por um casaquinho Zara 38 e depósitos em vale-refeição, vale-transporte e vale-qualquer-coisa em minha conta do Real. Perguntou se o super gerente Flávio Felipe era meu cúmplice nisso, mas desde Brasília eu sei que a contravenção e as coisas vergonhosas em geral não admitem cúmplices.

Há certas coisas que a gente tem de fazer na cara e na coragem. E nesta história, acreditem, o Nelson foi mais corajoso que eu, porque, para o resgate do presente, ele me colocou diretamente em contato com sua mãe fofa, uma doce jovem senhora portadora de olhos profundamente azuis, que gosta de teatro mas quase nunca encontra companhia. Imagine se eu ainda fosse uma perigosa ladra de picolés, o perigo que essa linda não estaria correndo ao tomar um café em minha companhia, ao lado de uma tentadora loja de sorvete italiano! ;o)