Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

sexta-feira, setembro 12, 2008

Da fé etíope

No meu último dia inteiro em NYC, eu voltei ao Harlem -- desta vez com reservas devidamente feitas -- para finalmente ver o coro gospel comer na Igreja Batista Abissínia. Tico levou um tempão pra fechar sinapse em Teco até eu recordar que abissínio = etíope. Então, quando eu tomava o trem pra Rua 135, tive uma súbita curiosidade sobre a espiritualidade do povo etíope. Pensei que deve ser foda passar semanas sem comer e ainda assim acreditar em Deus. Lembrei dum filme franco-israelense sobre a incrível história de um menino etíope que mente ser judeu secular para obter exílio da fome e miséria em Israel, e tudo que ele precisou fazer para isto foi mentir que o nome de seu avô era Jacó, sua mãe era Sarah, e por aí vai. Não me lembro o nome do filme, mas se alguém daqui souber, eu edito este post e divulgo, porque esse é um daqueles filmes que todos deveriam ver para obter uma percepção ligeiramente mais acurada da loucura que é este mundo.

PS: O Tom descobriu que o filme se chama "Um Herói de Nosso Tempo". Recomendo.

Pode ser um reducionismo extremamente perverso de minha parte, mas tenho pra mim que só consegue acreditar em Deus, de verdade (sem essa punheta de dizer "se deus quiser!" por falta de uma frase de efeito mais rápida e inócua), quem tem muita culpa, ou um medo irracional de morrer e ir pro inferno, ou a fé ingênua de que a intimidade com o almighty possa acompanhar vantagens individuais, como a cura de uma doença grave ou os seis números exatos da mega sena*. E assim ia eu, com esses pensamentos mundanos, naquele trem repleto de turistas religiosos desde criancinha (como eu), a caminho da igreja batista etíope. Vestida no meu melhor traje de missa dominical, onde realmente só faltavam chapéu e luvas pra compor a falsidade, DEUS FOI TESTEMUNHA de que eu transpirava fraude da cabeça aos pés.

*PS2: E porque eu também acho que a Moni-k-r, que eu nunca vi mas sempre amei, não se enquadra em nenhuma das anteriores, vou incluir mais uma categoria: admito que possa haver pessoas que acreditam em Deus porque se sentiram tocadas por algo maior, the greatest love of all, essa coisa abstrata da qual eu morro de inveja.

Quando cheguei, minha irmã me esperava na saída do metrô. Ela, que morou 2 anos no Harlem e odiou essa época, se adiantou em dizer: "Aqui a gente não pode dizer nem preto, nem negro, que isso aqui é ofensa. Os amarelos entendem, ficam furiosos e querem partir pra cima da gente." Quem são os amarelos?, eu quis saber, e ela me explicou que era um código secreto para p-r-e-t-o, gente de pele escura como nossa avó. Foi só falar na vovó que a Sam passou a cuspir marimbondos ao contar que, apesar de ter sangue genuinamente africano correndo nas veias, ela cansou de ser xingada, hostilizada, perseguida pelas ruas e até ameaçada de estupro pela amarelada racista (SIC) do Harlem por causa de sua pele e olhos claros. O racismo ainda é forte naquela parte da cidade, o que me faz desconfiar que onde se vê cubo de gelo, talvez haja mesmo um iceberg. Admito que, na primeira ida ao bairro com a Carrie, pressenti esse racismo dos negros contra os não-negros de que fala minha irmã, mas não tão forte quanto o cenário de horror que ela descrevia. O brasileiro até está acostumado a encarar o racismo subliminar das cotas raciais em universidades públicas, por exemplo, mas esse racismo direto, esse ódio à flor da pele, um ódio por causa da pele, soa ficcional pra gente: parece coisa de filme, de novela das seis ou do século passado. Como estávamos indo pra igreja, e eu logo imaginei que igreja não é lugar pra esse papo baixo astral, mudei de assunto e tocamos pra Etiópia.

Na porta da igreja, como da outra vez, cerca de 300 turistas se espalhavam ou em filas de meio quarteirão, ou na calçada em frente. Desta vez, no entanto, eu logo me apresentei a um dos sujeitos garbosos e bem vestidos que me barraram duas semanas antes e disse, vitoriosa, que tinha feito a reserva. Ele olhou pra minha irmã (e não pra mim, talvez pelo fato de eu ser ligeiramente amarela) e desdenhou: se você fez a reserva, então cadê a carta de confirmação? Ora, meu senhor -- eu tentava atrair a atenção dele para mim, eu é que estava conduzindo aquela negociação, e não minha irmã, embora ela seja muito bonita - , a carta está no meu gmail, é claro! (Eu quis dizer nas entrelinhas: essa porra aqui é Estados Unidos ou não é? Vocês hão de ter um computador conectado à internet em cada porta de igreja, ora!) Ora, minha senhora, sem a carta, nada feito. E minha irmã, que já estava doida pra sair dali, deu logo uma de cristã pra riba de moá e disse: "Baby, não era pra ser, né? Vamos embora daqui."

Não era pra ser. Não há nada mais religioso que acreditar que o destino da gente está nas mãos de Deus ou outras pessoas menos impotentes que a gente. Como religiosa eu não sou, e como o meu destino sou eu que faço, pro bem e pro mal, eu falei: "Não era pra ser el caratzo! Simbora prum cyber café imprimir ess'porra." A Sam ainda tentou me convencer de que não há cyber cafés no Harlem, que no Harlem não tem nem internet, nem táxi, nem as condições mínimas pra gente permanecer mais um segundo que fosse ali, mas enquanto ela desaguava suas mágoas pelos anos de perseguição racial, entramos num ônibus, descemos 9 quarteirões, achamos um cyber aberto, paramos, imprimimos e voltamos pra igreja num táxi-pirata. Tudo isso em 15 minutos, porque estávamos em cima da hora pra missa-culto-whatever.

Não sei se era táxi pirata, mas a verdade é que os táxis amarelinhos não amam o Harlem, não sei porquê (acho que eles não sabem que o Harlem é um bairro de amarelos, ou talvez os amarelos não se atraiam). No entanto, há outras alternativas sem taxímetro que, numa hora dessas, vamos combinar, a gente gosta e até pede bis.

Voltamos à igreja de carta em punho, mas o fiel etíope nem olhou pra mim, nem pra carta: olhou novamente direto pra minha irmã - primeiro pros olhos verdes, depois pros peitos, depois pra cintura, depois pros pés, e foi um olhar assim, daqueles tão demorados, que teria dado tempo até d'ele tirar feijão de molar com a língua - e disse pra mim (sem me olhar, porra!): "Você entra, mas ela não vai entrar, não. Não vai entrar por causa da sandália." Quando ele disse isso, minha irmã já estava virando a esquina. Eu puxei-a de volta, e senti um espírito Cor Púrpura baixando em mim. Como uma mamma italiana, multipliquei minhas mãos para gesticular e implorar, me sentindo a própria Miss Celie do filme que canta blues: "Please, Sir, ela é minha irmã! Sangue do meu sangue! (nesta hora, eu quase falei que ela saiu assim russinha, coitada, mas é bem limpinha, só que tive um pouquinho de medo de apanhar) Moramos a milhares de milhas uma da outra e há 7 anos (ou talvez 36, eu pensei) nós não conseguimos ir à missa de domingo juntas, esta seria nossa oportunidade. Não faça isso com a gente, Sir. Estou planejando esse domingo em família há semanas, e ela é tudo o que restou de minha família!" Do outro lado da calçada, espanhóis tiravam fotos do nosso drama familiar. O Sir permaneceu inflexível, falou "então ponha uns sapatos na sua irmã", e nos deu de ombros. Achei um abuso. Samantha estava sentando lava pelas ventas e gritava: "Eu sabia, eu sabia! Essa amarelada daqui é foda, eles me odeiam, sempre me odiaram!".

Se eu não estivesse tão chocada com a situação, teria até achado antropo-sociologicamente interessante ver um membro de minha família passando por essa saia-justa racial. O mais engraçado, mas talvez só eu seja doente o suficiente pra achar graça disso, é que eu e minha irmã descendemos de negros e temos muito orgulho disso. Tenho cá pra mim que os puristas etíopes não querem saber dessa bagunça de miscigenação, mas é irônico sofrer preconceito racial quando nossa bisavó só nasceu alforriada por causa da Lei do Ventre Livre, e nossa tata chegou ao Brasil como escrava, trazida por um navio negreiro oriundo dum costão africano que, pelas contas imprecisas dos que entregaram estórias duma geração a outra sem a vantagem da escrita, deve ser o que se chama hoje de Angola.

Quando os ânimos se acalmaram, eu senti a merda: ih, caráio. Então não vai rolar catarse, é isso. Às vésperas de voltar pra casa, depois de ser barrada e ter feito reservas, morri na praia da Etiópia. Minha irmã não entra, então eu não entro. Mas ela foi mais do que irmã, foi compreensiva, e disse: "Olha, eu moro aqui há 15 anos e nunca quis vir nessa igreja, nunca tive interesse. Só vim hoje porque você pediu, mas agora que você já está aqui e a gente imprimiu essa porcaria de carta, vai você. Eu te espero na Rua 125, que é o primeiro ponto pro expresso que sai dessa merda de lugar." Ainda me ofereci pra lhe comprar sapatos horrorosos por 20 dólares dum camelô na porta da igreja, mas ela estava decidida a não dar mais trela alguma praquela gentelha. Dei então uma de boa cristã e cedi gentilmente minhas duas vagas excedentes da reserva a um casal de italianos que acabara de descobrir in loco, para seu choque e horror, que aquele programa turístico carecia de reserva antecipada. É realmente chocante ir até o cu do Harlem e saber que nada feito. Eu poderia ter dado meu excedente da reserva prum casal espanhol que sofria desse mesmo abatimento quase simultaneamente, mas coloquei a religiosidade de italianos e espanhóis na balança e venceu a galera de Gênova pela proximidade com o Vaticano. DEUS É TESTEMUNHA de que eu resisti bravamente à tentação do capeta que me dizia: "Vende essa reserva e compra um vestidinho com o dinheiro, minha filha. Essa galera aqui paga. Turista paga tudo!" Por causa de minha boa ação, fiquei tão cheia de moral cristã que, se a igreja fosse católica, eu até entraria na fila pra comungar, mesmo sem nunca ter feito primeira comunhão ou me confessado. Quem precisa de primeira comunhão quando vence um debate tão eloqüente com o capeta, hã?

Os italianos ficaram coladinhos comigo, porque só tinha uma carta para os 3 e a logística da fila era complicada demais pra gente entender. Eles, como eu, ouviram coisas horríveis sobre o tratamento aos turistas na Etiópia: que a gente só pode ouvir o coro comer do corredor e em pé; que eles não deixam a gente sentar; que fazem a gente doar 15 dólares à força; que só deixam a gente ficar meia hora pra dar chance de achacar mais turistas. Mas não foi nada disso. Passamos 2 horas extremamente divertidas na igreja etíope, muito mais tempo do que eu imaginei que pudesse suportar sem morrer fulminada de tédio. Doamos só porque quisemos (eu dei uma nota de dois, depois morri de pena porque era minha última) e sentamos num lugar excelente, no melhor estilo balcão nobre do Municipal, de cara pro coral e com visão privilegiada pra nata do Harlem.

Só que agora eu escrevi demais e estou com preguiça de contar o que aconteceu lá dentro. Outra hora, outra hora.


A rasteirinha da discórdia: meu sapatinho de laço verde não conseguiu convencer o batista abissínio a permitir a entrada de minha russa irmã em sua concorrida igreja com uma sandália rasteira. Vai ver que ele não gostou do esmalte porque era marrom, porque se fosse black, duvido que ele não fosse achar beautiful!


Pela indumentária, dá pra ver quem tem fé e quem não tem: quem tem fé, se veste bem; quem não tem, vai de jeans e camiseta, mas também não entra na casa do Senhor etíope. E quem finge ter fé, como eu, vai com uma roupa meio termo.

Confusão: a horda de turistas barrados cruzando a rua de um lado pro outro dá um nó no trânsito. Sorte que o turista geralmente chega lá de metrô, senão atiradores de elite etíopes começariam a abater os hereges que só querem ir pra igreja pra ouvir o coro comer.

The Abyssinian Baptist Church: apesar de tudo, vale a pena o perrengue pra conhecer. Eu recomendo aos mais brancos, porém, que peguem um bronze antes de tentar a sorte no Harlem.