Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

sexta-feira, setembro 26, 2008

A perícia médica

Há cerca de dois meses, eu avisei no meu trabalho que iria me submeter a uma cirurgia em setembro e perguntei o que deveria fazer para solicitar a licença médica para o pós-operatório. Na ocasião, riram de mim e disseram que um perito médico só me daria licença após a cirurgia, e não antes. Eu aleguei que depois da cirurgia eu deveria estar em casa em repouso, e não numa sala com 60 doentes aguardando a vez de contar sua história triste a um perito. Meus colegas então me tranqüilizaram, dizendo que eu poderia mandar alguém da minha família à biometria - que é como os burocratas chamam a perícia médica - em meu lugar. Isso fez muito sentido pra mim na ocasião, e de certa forma até me estarreceu, porque NADA no serviço público faz muito sentido.

Entrei e saí de férias, entrei e saí de um centro cirúrgico, sofri alguns horrores pós-operatórios e ontem, quando me senti melhor, liguei pro meu trabalho para perguntar onde exatamente eu deveria mandar meu pai apresentar os laudos médicos. Para meu choque e horror, descobri que:

1. Ontem era o último dia para eu fazer a perícia médica sem que me cortassem o ponto;
2. Eu tinha de ir pessoalmente à biometria, porque o médico não poderia examinar meu pai em meu lugar (e os peritos são pagos para desconfiar do laudo de seus colegas, mesmo quando eles vêm acompanhados de recibos com CPF e o escambau).

Com um olho na minha licença prêmio (coisa que só ganho se não cortarem meu ponto por 5 anos seguidos) e outro no relógio, comuniquei a emergência aos meus dedicados pais: eu tinha apenas uma hora para ir à Mangueira pegar um papel e então levá-lo à biometria, onde um médico me examinaria e, pra isso, eu precisaria da ajuda deles. "Será que alguém em seu trabalho não pode passar esse documento por fax à perícia?", quis saber meu pai. Eu perguntei e não, não podia. A burocracia não saiu da Era Cenozóica, e o papel ainda é essencial pois o homem primitivo, coitado, precisa fazer fogueiras para se aquecer!

Fizemos todo o itinerário de um lado a outro da cidade, eu peguei o tal papel e levei-o ao centro administrativo da prefeitura. Chegamos à biometria no quadragésimo quarto minuto do segundo tempo. Havia cerca de 40 pessoas na minha frente, e a minha única passagem anterior pela perícia médica (por causa de uma conjuntivite que, por mim, não seria motivo pra faltar ao trabalho, mas meus colegas estavam com medo do contágio) me fazia estimar que a espera seria de pelo menos 2 horas. Expliquei pra burocrata do balcão que eu estava com dores latejantes e perguntei se podia deixar meu pai ali em meu lugar. Ela respondeu com um sorriso entre sádico e educado que, antes de falar comigo, eu teria de pegar uma senha e aguardar a minha vez. Imediatamente percebi a gravidade da situação e falei pro meu pai que não tinha a menor condição de esperar duas horas naquelas cadeiras duras com aquela quantidade mega de doentes murmurantes. Ele disse que ia cuidar de tudo e me mandou sentar. Da cadeira dura, o vi falando baixinho com a moça do balcão e percebi que ele nem pegou a senha pra isso. Depois o vi passar de um balcão a outro e, cerca de cinco minutos depois, eu fui atendida. O médico me entrevistou, carimbou uma papelada e me mandou pra casa por mais 11 dias.

Quando saímos da biometria, ainda supresa por ter ficado tão pouco tempo nas malhas da burocracia, perguntei pra ele:
- O que você disse a ela?
- Que você estava com uma doença contagiosa raríssima, e que o contágio se dá pelo ar.

Imagino que quando a mocinha sádica do balcão me viu com a cara duplicada de tamanho, o olho torto espremido numa bochecha pendular e uma gaze me tampando o nariz e parte da boca, ela só pode ter pensado uma coisa: FU-DEU! Aí ela passou meu pai com uma papelada semi-preenchida a um outro balcão de antendimento. O burocrata desse balcão olhou os papéis, olhou pro meu pai e disse:
- Vanessa?
- Melancia.
- Ahn? Como? Não entendi.
- Ué, isso não é um jogo? Você fala uma palavra e eu digo outra, não é assim? Pois então: eu estou jogando.

Partindo da premissa que um homem que fala um absurdo desses com a voz grossa e grave - sem piscar ou emitir qualquer sinal de que está brincando - só pode ser um maluco disposto a matar ou morrer, o rapaz chamou o médico, o médico me chamou e fomos todos felizes para sempre, pelo menos pelos próximos 10 dias, quando eu terei de passar por tudo isso novamente.

***

Eu sei que não posso espirrar de boca fechada nem gargalhar pelo nariz, mas toda vez que penso nesse embate entre meu pai e os burocratas da biometria, tenho vontade de explodir numa gargalhada profunda. Vê se pode, minha gente: melancia! Meu pai é o máximo.