Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

terça-feira, maio 26, 2009

Memória da pele

Depois de ver Budapeste, depois de ler Budapeste e depois de passar dias com a exótica sensação de que eu tenho de fazer mais uma tatuagem senão eu vou morrer, senão eu vou explodir, senão eu vou perder o sentido, cheguei à seguinte conclusão: a memória nada mais é do que uma das funções sensoriais da pele; e, sem memória, a gente simplesmente não vive. Ou seja: esqueçam o cérebro, o coração ou o fígado: a pele é o órgão mais vital do corpo.

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Hoje foi um dia bonito e um dia feliz. Eu passei as primeiras horas da manhã dizendo pra mim mesma: quero lembrar deste dia para sempre. Quero lembrar de todos os dias para sempre. Quero lembrar de tudo, quero lembrar das vozes, das fisionomias, dos nomes - meu deus, como eu esqueço dos nomes! -, quero me lembrar de um dia bom e comum, como este, e torná-lo eterno. Quero lembrar de um domingo banal, daqueles em que eu acordava ao lado dele, tentava dormir por mais 10 minutos, sentia vontade de cantar e ia pra cozinha preparar o café pra não acordá-lo com minha euforia matinal. Eu pegava o jornal na porta, lia as principais manchetes enquanto passava o café e fazia carinho na gata. E então me perdia nas palavras, nos aromas e nos minutos e aí, quando dava por mim, ele já estava de pé.

Eu quero lembrar de todos esses minutos, de todos esses passos, do ronronar da gata, do cheiro do café, do toque do jornal, dos passos dele subindo a escada, mas sinto a espinha gelar quando percebo que ele, na minha memória, é apenas um borrão: um vulto sem rosto e um corpo com pijama marinho de formas indefinidas que se locomove do mesmo jeito, à mesma velocidade, e tem a mesma voz, as mesmas falas, mas não tem rosto. Eu pressiono minha memória a resgatar esse rosto, mentalizo fotografias, mas tudo que vejo são poses estáticas, sorrisos congelados - alguns tristes, outros genuinamente felizes - e sinto um desespero extremo ao pensar que o fim está próximo: minha memória está se esvaindo e meu estoque de dias felizes está condenado a terminar em breve. Eu ainda sou capaz de sentir o cheiro da gata, o gosto do café, a textura do jornal, o canto matinal brotando em minha garganta, mas o rosto... do rosto, ainda que me esforce, eu não consigo me lembrar.

Eu sei como é esse rosto: eu vivi esse rosto; eu idolatrei esse rosto; eu olhei pra esse rosto por infinitas madrugadas, jurando que nunca mais iria parar de olhá-lo - mesmo que eu dormisse, mesmo que eu morresse. E ainda assim eu não consigo me lembrar dele. A minha pele me traiu. Dentre todas as coisas que ela poderia ter esquecido, esse rosto deveria ser sua última opção de esquecimento. Ele estava lá: logo embaixo dela. Guardado cuidadosamente embaixo da minha pele. E mesmo assim ela o perdeu, a ingrata!

Agora eu quero, eu preciso fazer uma tatuagem que me faça lembrar. Que não me deixe esquecer, nunca mais, de nenhum dia bom, de nenhum momento eterno. Na verdade, preciso de um desenho que interrompa, pelo menos por mais uns anos, o progresso do fim.

A vida começa a terminar quando a pele começa a se esquecer.