Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

terça-feira, maio 05, 2009

Pacífico


Quando entrei naquele barco, sabia que o objetivo do passeio era mergulhar. Apnéia mesmo, o mergulho in natura só com aquilo que Deus nos deu (e um pé de pato - que Deus deu pros patos, por exemplo, mas esqueceu de dar pra gente - e uma máscara com snorkel, que Deus embutiu em algumas espécies marinhas, mas esqueceu de embutir na gente). Só tinha um detalhe: minha fobia de peixe. Eu tento ser racional em relação a isso, afinal acho o mar duma lindeza ímpar e eu não queria me afastar dele só por causa do meu exótico pânico de ser tocada por peixes sob a água. Foi nesse clima "mar-amado" que eu entrei no barquinho disposta a encarar meus medos de frente. E lutar, se preciso fosse, com os peixes do Oceano Pacífico.

Uma hora até chegar no ponto em que mergulharíamos. O Pacífico é um oceano um tanto quanto nervoso, então o barco ia quicando de um lado pro outro, e eu pensava: aqui não, aqui não, aqui talvez? Não, o barco seguiu, aqui o mar está mexido demais pra gente mergulhar, então aqui não. Aqui talvez? - e olhava pro barqueiro pra tentar interpretar seu cenho - Hum, sei... aqui não. Até que o barco parou num lugar que eu tinha acabado de classificar como "aqui, definitivamente, não, porque exatamente neste ponto a água passou de azul marinho a negro, então a profundidade deve ser favorável à presença não de peixinhos curiosos que podem querer se aproximar de mim, mas de monstros marinhos pré-históricos que estão há nove séculos aguardando um pernecho com o formato do meu". Quando a gente mergulha de snorkel, a gente quer um lugarzinho mais raso, né? Afinal, pegamos máscara, pé de pato e até um canudo emprestado de Deus, mas isso não transforma ninguém em golfinho. Fiquei indignada com o local escolhido pelo barqueiro. Queria dizer "Peralá, meu amigo, seja razoável: o senhor não acha que aqui seremos impiedosamente devorados por monstros marinhos?" Mas vai dizer isso em espanhol sem falar espanhol! Quando eu estava quase chegando a um elaborado protesto no meu melhor portunhol, percebi que era a única - de um grupo de doze - que ainda estava no barco chupando o dedão. Então eu fiz o sinal da cruz - porque eu fico subitamente religiosa nesses momentos - olhei pro negrume das águas nada pacíficas e pedi: "Deus, não deixa esse monstro acordar agora! Deixa eu sai da água primeiro, porque eu tenho uma necessidade inexplicável de ver aquilo que está me devorando." Deus ouviu minha prece com enfado e fez com a mãozona: Vai, minha filha, pula logo. E eu pulei.

Não achei a água tão fria. Estava fria, mas não tanto quanto eu imaginei que seria num ponto negro do Pacífico. Cuspi na máscara e apliquei-a ao rosto. Enfiei a cara na água e vi: azul, azul, azul. Outro lado: azul, azul, azul. Tá certo que não era simplesmente um azul como qualquer outro: era um monte de azul serpenteado por raios refratados de luz. Girei 360 graus: nenhum peixe à vista. Era pra eu ficar triste, afinal estava ali pra ver coisas debaixo da água, mas fiquei extremamente feliz por não ter de encarar minha fobia dessa vez. Tenho certeza de que há peixes no Oceano Pacífico, mas acho que Deus foi super generoso comigo quando desviou todos os cardumes um pouquinho pra lá. Senti-me divinamente mimada, e olha que eu nem mereço tanto. Olhei em volta e estavam todos os turistas do meu barco espalhados em pontos distantes, talvez procurando os peixes que eu adorava evitar. Um deles emergiu aos gritos de "Que merda, não dá pra ver merda alguma nessa porra de lugar fodido!" Acho que em português a gente nunca usaria tantos palavrões numa só frase, mas eu desconfio que palavrão em português tem peso três, ao passo que em inglês tem peso um.

Eu me senti ótima porque não estava reclamando de nada. Eu sei, eu pensei em reclamar, mas não reclamei efetivamente, e isso me deu uma inédita sensação de superioridade: não reclamei, não xinguei e até gostei de não ver peixe algum. Na verdade, estava extremamente satisfeita por estar ainda, dez minutos depois, com as minhas pernas e braços intactos, porque afinal, aquelas águas são conhecidas por seus cardumes vorazes de tubarões.

O mergulho ia durar meia hora, quarenta minutos, e eu ainda tinha muito tempo pra matar. Não ia nadar até o ponto em que estavam os outros malucos, porque ali, sim, provavelmente haveria peixes. Depois eu pensei que, se eu fosse um peixe e visse um cardume assustador de gente, o que faria? Ora, nadaria pra bem longe dali! E bem longe dali, quem estava? Eu. Então eu nadei até as pessoas pra que os peixes não me encontrassem, mas juntei-me ao grupo contrariada, pensando na burrice dos peixes: com tanto lugar pra fugir - afinal, caramba, aquilo ali é um oceano, e não um oceanário! - eles tinham justamente que fugir na minha direção? Até que entendi porque a galera se reuniu naquele ponto: porque ali, alguns metros abaixo, o sol encontrava uma pedra clara, que refletia a luz e iluminava o fundo. Se a gente fechasse um olho, dava pra ter até a sensação de que a rocha, a base submersa da ilha, estava ao alcance da mão. Não estava. Todos tentavam descer até ver alguma forma de vida próxima à rocha luminosa. E todos subiam frustrados com sua condição de humanos ridículos, dotados de tímpanos que explodem, e pulmões que não respiram debaixo d'água.

Cansada de tentar me aproximar da grande rocha branca, que parecia estranhamente mais próxima da gente do que estava de fato, eu resolvi flutuar no Pacífico. Entreguei meu corpo ao mar com uma tranquilidade inédita, porque era minha primeira vez num oceano sem peixes. Então eu me vi de cima e percebi que eu não estava no oceano, e sim numa gota, que por sua vez estava dentro de outra gota, que estava dentro de outra, e infinitamente muitas outras, até seu invólucro final: o oceano. E este, sim, tinha uma quantidade expressiva de peixes que se riam da minha ingenuidade.

Foi aí que eu me entendi meu estranho orgulho de ser a única de doze a não reclamar de nada: há sempre algo muito maior que a gotinha que elegemos pra fazer tempestade em copo d'água, e quem se dispõe a explorar as incontáveis camadas que separam nossa pequenez da Grandeza que nunca se alcança com a mão (mas ainda assim nos brinda com a sensação de que é possível), sempre encontra no caminho uma pista pra felicidade.