Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

sexta-feira, maio 01, 2009

Fragmento

Aquela não era a vida com que sempre tinha sonhado. Pensando bem, passou muito pouco tempo sonhando desde que sua vida começou, e começou quando mesmo? Ah, sim: quando precisou pagar sua primeira conta. Isso não quer dizer que ela tenha se tornado uma mulher amargurada pela vida, e sim uma mulher realista, do tipo que tem os oito pés fincados na terra, como um polvo-humano que caminha, paga contas e usa a ponta de cada um de seus tentáculos para conter infiltrações e buracos que vão se formando no teto de cristal com uma vista cada vez mais embaçada pro céu estrelado e pros sonhos que deveras acalentou. Eram sonhos de quê? Ela sequer se lembrava. Ou lembrava vagamente dos personagens, de alguns cenários, de uma casinha com paredes e janelas brancas e um vaso de flores amarelas sobre a mesa de jantar. Ela sonhava com uma mesa de jantar bem no meio do sala, uma mesa com quatro assentos, porque em seus sonhos antigos, havia sempre... Bem, que besteira. Ela sentia vergonha de si mesma quando pensava nisso, mas a verdade é que já sonhou em ter uma família com mamãe, papai e filhinhos. E um cachorro. E uma vaca chamada Clementina. Algumas galinhas, talvez. E flores amarelas sobre a mesa da sala branca divinamente aromatizada pelo café fresquinho, saindo lá da cozinha na doce companhia de bolinhos de chuva.

Talvez o céu seja assim. Mas quem, hoje em dia, consegue olhar pro firmamento e vislumbrar o céu? Tudo que se vê é um misto de estrelas e sonhos esquecidos ou destruídos pelo caminho. Há tantos anos que tinha parado de sonhar que chegava a reprimir um sorriso de contentamento quando se lembrava dessas pieguices. A memória de uma extinta capacidade de sonhar, de alguma forma muito estranha, a aproximava das outras pessoas. Das pessoas normais que, ao contrário dela, existiam sem doer.


Ela nunca soube como as pessoas normais faziam pra existir sem doer. Talvez todos mintam, ou talvez algumas pessoas sejam simplesmente mais distraídas pra dor do que outras. Talvez haja, de fato, aquelas que não sentem nada e acham tudo fácil, simples e natural. Essas pessoas talvez nem sonhem, porque a vida delas deve ser um sonho acordado, e é possível que tenham salas brancas com vasos repletos de flores sobre a suntuosa mesa de jantar com todos os seus oito assentos. Ela tinha, em contrapartida, oito braços prontos para lutar contra essas fraquezas. Não era doce, não era adorável e não sabia entregar seu coração a ninguém. Mas se orgulhava de pensar que era forte.



Eu tenho um carinho especial por essa moça. Se eu entrasse numa briga, era ela quem eu gostaria de ter ao meu lado. Se entrasse num labirinto-caverna escuro, sem lanterna e sem noção, tenho certeza de que ela me mandaria calar a boca pra poder pensar, e então agarraria minha mão pelo pulso, pra não ter de entrelaçar os dedos aos meus, e diria: é por aqui. E em poucos minutos a gente estaria fora. Mas fazer o quê se ela não pode ser gostada! Fazer o quê se ela trancou o coração e jogou a chave no fundo do oceano? Eu gosto dela secretamente ainda assim, porque já foi capaz de sonhar um dia; porque me acha superficial e ridícula (só porque eu não sei da missa um terço, porque minha vida é fácil, porque tudo pra mim é simples - e isso nem é verdade) e porque eu ainda tenho esperança de que um dia vou aprender com ela a sair dessa caverna sem me desesperar; que um dia eu vou aprender a calar minha mente pra conseguir ouvir a solução, e então eu vou descobrir que também tenho oito patas pra correr mais rápido, oito braços pra lutar mais ferozmente e oito pernas pra fincar no chão toda vez que estiver com medo de enlouquecer.

Porque a vida de ninguém é fácil e nem nada é simples pra pessoa alguma, só que algumas pessoas, porque são tão difíceis e tão ferozes, e porque combatem tão intensamente tudo aquilo que se convencionou associar à felicidade, têm o talento especial de despertar a estranha inveja de sermos nós mesmos. O carinho que sinto por essa moça é inversamente proporcional à minha vontade de ser como ela, mas que eu queria, eu queria: poder aprender com ela a sair dessa caverna. Ou controlar meu desespero pra ficar até que eu consiga ouvir claramente a solução.

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