Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

quarta-feira, abril 29, 2009

A arma secreta


Meus pais acabam de passar mais uma temporada em Salvador, capital internacionalmente conhecida por ser a cidade onde vive O Cara, meu fantástico sobrinho engolidor de pilhas. Eles sempre voltam com histórias incríveis de como O Cara está ainda mais fantástico e ainda mais habilidoso no futebol, mas as notícias que eu mais aguardo são sempre as das brincadeiras.

- Vocês brincaram de quê?, pergunto.
- De guerra, claro.

Guerra é a brincadeira favorita de avô e neto há quase 4 anos. Meu sobrinho despeja uma caixa de brinquedos no tapete da sala e dela saem soldadinhos e índios de plástico em várias poses, além de pequenas partes de brinquedos que se desgarraram da matriz e acabam tendo alguma serventia nas estratégias militares dos dois. Cada participante escolhe sua cor, pega seus soldadinhos e parte pra um lado do tapete. Meu sobrinho gosta de dispô-los em fileiras, como se fossem peças de um tabuleiro de xadrez, ao passo que meu pai gosta de observá-lo. Quando O Cara diz que está tudo pronto, podemos começar a batalha, vovô?, meu pai sempre diz que sim. O que ele nunca diz antes do tempo -- porque esta é a melhor parte da brincadeira -- é que arma secreta ele usará dessa vez. E as armas secretas do vovô são sempre as mais letais e infalíveis do planeta, o que deixa meu sobrinho chocado, porque em pouco tempo a arma secreta do vovô dizima, sem dó nem piedade, aquele exército inteiro de soldadinhos enfileirados.

O avô já usou como arma secreta a Múmia. A Múmia era apenas uma parte desgarrada de algum brinquedo e não tinha nada a ver, nem em tamanho, nem em contexto, como os soldadinhos. Pois a Múmia tinha um chulé e um mau hálito milenar que dizimou os soldadinhos adversários. E vá você questionar a letalidade de um bafo que passou 3 mil anos sem ver escova de dente! Meu sobrinho ficou um pouco chocado no início, quis encerrar a brincadeira mas, no dia seguinte, lá a múmia estava em seu campo de batalha, combatendo os soldados do avô.

Depois veio o Canhão Cocotrônico. Meu pai pegou uma garrafa de 2l coca-cola e deu um jeito de fazê-la lançar contra os inimigos feijões altamente letais, dando uma baixa geral no exército do menino. Como era uma arma de fácil construção, o avô foi generoso o bastante pra construir um idêntico pro neto, mas aí quem não gostou foi a mãe do menino, porque sua sala virou um campo minado de feijões derrapantes, e então esta arma secreta foi radicalmente banida de Salvador por motivo de força maior.

Com o passar dos anos, percebendo que sua desorganização acabava se tornando a arma secreta do inimigo, meu sobrinho começou a ser mais criterioso com o tipo de brinquedo que ele colocava na caixa. Isso deve ter acontecido depois que o avô usou como arma secreta a Menininha Inocente, uma boneca completamente fora de contexto na casa de um menino belicoso e que, por não pertencer a lugar algum, acabou parando na caixa de soldadinhos. Pois a Menininha Inocente era o próprio diabo! Fazendo-se de inocente, ela transitava pelo campo inimigo e, de repente, exterminava todos os soldados de uma só vez. Foi a arma secreta mais radical de todas, porque acumulava a um só tempo dissimulação, crueldade, eficácia letal e sarcasmo. Isso deixou o menino profundamente perturbado. Foi quando ele percebeu que o mundo é mau. Ninguém sabe o que aconteceu com a Menininha Inocente depois dessa batalha. Há quem diga que ela foi vista voando da janela do quarto andar, mas é possível que o Beleléu a tenha levado por motivo de bagunça maior. A verdade é que a Menina Inocente era tão má, mas tão má, que ninguém sentirá falta dela.

A última arma secreta inventada pelo avô foi a Mão-Boba Propositônica. A Mão-Boba Propositônica nada mais era que outra parte desgarrada de algum brinquedo, e que o avô amarrou numa cordinha para devastar o exército inimigo pelo ar.

Com o desenvolvimento criativo e tecnológico das armas secretas, as batalhas têm sido cada vez mais curtas, e em breve o avô e o menino entrarão numa fase guerra fria, em que ambos, em vez de lutar, apenas descreverão suas armas secretas e dirão o estrago enorme que elas poderiam causar. Eu, particularmente, torço pra que este momento logo chegue, porque muitas vidas de soldadinhos de plástico poderão ser poupadas quando avô e Cara resolverem ser razoáveis.

Todas as batalhas acabam por motivo de extermínio maior. Nesse instante, meu sobrinho fecha a cara, guarda seus soldados e finge (mal) que não está nem aí. Mas no dia seguinte, podem apostar: a arma secreta do avô estará no campo de batalha do menino, na esperança de repetir os atos heróicos criativos da véspera. Espero que tanto derramamento de sangue plástico pelo menos sirva, às gerações futuras, como lição de ternura.