Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

domingo, janeiro 03, 2010

Liberté, égalité, dualité



Faltando pouco mais de 40 dias pra minha viagem de 10 dias entre o céu e o mar do litoral baiano, uma road trip completamente família em que eu, pela primeira vez na vida, daria - e dei! - uma de boadrasta (na moral, na moral), sofri uma queimadura no rosto durante um procedimento estético absolutamente banal, que basicamente consiste numa técnica que estorrica a pele do contribuinte com um flash de laser capaz de destruir tudo que encontra pelo caminho, do DNA à melanina, o que teoricamente resultaria no extermínio da pequena mancha de 3 mm de diâmetro que eu tinha na maçã do rosto do lado direito.



A tal mancha era quase uma minúscula sarda que apenas eu e minha dermatologista notávamos, mas depois de meses passando cremes e torturando a pobrecita com ácidos diversos e nitrogênio líquido, minha dermato decretou que só um milagre sobre a face da Terra seria capaz de dar cabo, de uma vez por todas, dessa maldita sarda farsante -- um quase prenúncio maldito de que eu, dali a poucos meses ou anos, poderia me tornar uma vaca malhada se deixasse o mal por combater --: a luz pulsada. Então fiz uma sessão e deu tudo certo; já na segunda sessão, ocorreu um infortúnio que, por toda a confiança que tenho em minha médica, eu só posso atribuir à firma que aluga o aparelho de laser/luz pulsada a ela: os locadores irresponsáveis trocaram a lâmpada da ponteira e nada informaram à clínica, e o resultado disso é que todas as clientes tratadas naquele dia receberam uma carga (de laser) 20% maior do que deveriam. Ou seja: TODAS as pacientes tratadas naquele dia se fuderam de verde e amarelo, e eu entre elas. Minha pequena mancha de 3mm virou então uma larga queimadura de 10 cm e, após duas semanas de lágrimas, revisões e tratamentos intensivos para minimizar os danos, faltando menos de um mês para a tão sonhada viagem de praias maravilhosas com o amor da minha vida e seu rebento, minha dermato explicou a situação da seguinte forma: "Existem em você duas pessoas: uma bronzeada e outra não bronzeada. A sua mancha sumirá, isso eu posso lhe garantir, mas, para que isto aconteça, você terá de fazer com que essas duas pessoas se reencontrem. Ou seja: não poderá pegar sol SOB HIPÓTESE ALGUMA nos próximos 6 meses."


Como assim?, perguntei. Quer dizer que eu não poderei ir à praia em Arraial d'Ajuda? Em Morro de São Paulo? Em Salvador? E ela, na maior cara de pau, disse que sim, mas que pra isso eu deveria usar FPS 100 (só uma marca francesa faz um milagre desses, e a preço de milagre burguês fundamentalista) e depois, por cima de toda essa massaroca, eu ainda deveria usar 3 camadas de pasta d'água. Tipo hipoglós?, perguntei inocentemente. "Não! Tipo pasta d'água mesmo, que hipoglós não sai com água e sabão, mas pasta d'água sai. E você vai querer que saia, se quiser ter uma cara de dia e outra cara... assim, mais normal... de noite."


Desd'esse dia eu venho me emplastrando de filtro, pasta d'água e chapéus de aba larga com filtro UVA/UB. E é assim que eu tenho corrido na praia, é assim que eu vou à piscina do prédio, e foi assim que eu passei meu recesso de fim de ano, sobrevivendo bravamente a comentários do tipo: "Ih, carái! Não é que Michael Jackson não morreu?!?". 


Mas como eu posso promover o reencontro do meu eu [cada vez mais] bronzeado do pescoço pra baixo com o meu eu [cada vez mais] amarelo-escritório do pescoço pra cima; como só eu posso administrar a coexistência dessas duas pessoas tão melanodistintas em um só corpinho; e, principalmente, porque eu estou cagando baldes pro que pensam as pessoas quando me vêem fantasiada de Marcel Marceau, queimada ou não, ambígua ou não, eu tenho aproveitado minha vida ao máximo - com e/ou apesar do verão, da queimadura facial e, obviamente, graças a todo o resto. Sobretudo todo o resto.


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Liberdade é cruzar o Brasil de sul a norte e de norte a sul nas asas do grande amor; é harmonizar o prazer com o dever sem culpa; é comer quantas rabanadas quiser no Natal e depois ainda ter pernas pra atravessar o mundo sem compromisso com as calorias.


Igualdade é diluir o próprio preto no branco. É permitir que os opostos coexistam. É perceber que, na verdade, os opostos sequer existem.


E dualidade, por fim, é desconfiar que nada disso é verdade. E que o único fato ambíguo verdadeiramente inquestionável em todo o planeta é que o Rio continua lindo; e que continua sendo o purgatório da beleza e do caos. O carioca é a mais completa tradução da máxima neofrancesa liberté, egalité, dualité que minha mancha facial me obrigou a inventar.


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Feliz 2010 a tutti!