Liberté, égalité, dualité
Faltando pouco mais de 40 dias pra minha viagem de 10 dias entre o céu e o mar do litoral baiano, uma road trip completamente família em que eu, pela primeira vez na vida, daria - e dei! - uma de boadrasta (na moral, na moral), sofri uma queimadura no rosto durante um procedimento estético absolutamente banal, que basicamente consiste numa técnica que estorrica a pele do contribuinte com um flash de laser capaz de destruir tudo que encontra pelo caminho, do DNA à melanina, o que teoricamente resultaria no extermínio da pequena mancha de 3 mm de diâmetro que eu tinha na maçã do rosto do lado direito.
A tal mancha era quase uma minúscula sarda que apenas eu e minha dermatologista notávamos, mas depois de meses passando cremes e torturando a pobrecita com ácidos diversos e nitrogênio líquido, minha dermato decretou que só um milagre sobre a face da Terra seria capaz de dar cabo, de uma vez por todas, dessa maldita sarda farsante -- um quase prenúncio maldito de que eu, dali a poucos meses ou anos, poderia me tornar uma vaca malhada se deixasse o mal por combater --: a luz pulsada. Então fiz uma sessão e deu tudo certo; já na segunda sessão, ocorreu um infortúnio que, por toda a confiança que tenho em minha médica, eu só posso atribuir à firma que aluga o aparelho de laser/luz pulsada a ela: os locadores irresponsáveis trocaram a lâmpada da ponteira e nada informaram à clínica, e o resultado disso é que todas as clientes tratadas naquele dia receberam uma carga (de laser) 20% maior do que deveriam. Ou seja: TODAS as pacientes tratadas naquele dia se fuderam de verde e amarelo, e eu entre elas. Minha pequena mancha de 3mm virou então uma larga queimadura de 10 cm e, após duas semanas de lágrimas, revisões e tratamentos intensivos para minimizar os danos, faltando menos de um mês para a tão sonhada viagem de praias maravilhosas com o amor da minha vida e seu rebento, minha dermato explicou a situação da seguinte forma: "Existem em você duas pessoas: uma bronzeada e outra não bronzeada. A sua mancha sumirá, isso eu posso lhe garantir, mas, para que isto aconteça, você terá de fazer com que essas duas pessoas se reencontrem. Ou seja: não poderá pegar sol SOB HIPÓTESE ALGUMA nos próximos 6 meses."
Como assim?, perguntei. Quer dizer que eu não poderei ir à praia em Arraial d'Ajuda? Em Morro de São Paulo? Em Salvador? E ela, na maior cara de pau, disse que sim, mas que pra isso eu deveria usar FPS 100 (só uma marca francesa faz um milagre desses, e a preço de milagre burguês fundamentalista) e depois, por cima de toda essa massaroca, eu ainda deveria usar 3 camadas de pasta d'água. Tipo hipoglós?, perguntei inocentemente. "Não! Tipo pasta d'água mesmo, que hipoglós não sai com água e sabão, mas pasta d'água sai. E você vai querer que saia, se quiser ter uma cara de dia e outra cara... assim, mais normal... de noite."
Desd'esse dia eu venho me emplastrando de filtro, pasta d'água e chapéus de aba larga com filtro UVA/UB. E é assim que eu tenho corrido na praia, é assim que eu vou à piscina do prédio, e foi assim que eu passei meu recesso de fim de ano, sobrevivendo bravamente a comentários do tipo: "Ih, carái! Não é que Michael Jackson não morreu?!?".
Mas como só eu posso promover o reencontro do meu eu [cada vez mais] bronzeado do pescoço pra baixo com o meu eu [cada vez mais] amarelo-escritório do pescoço pra cima; como só eu posso administrar a coexistência dessas duas pessoas tão melanodistintas em um só corpinho; e, principalmente, porque eu estou cagando baldes pro que pensam as pessoas quando me vêem fantasiada de Marcel Marceau, queimada ou não, ambígua ou não, eu tenho aproveitado minha vida ao máximo - com e/ou apesar do verão, da queimadura facial e, obviamente, graças a todo o resto. Sobretudo todo o resto.
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Liberdade é cruzar o Brasil de sul a norte e de norte a sul nas asas do grande amor; é harmonizar o prazer com o dever sem culpa; é comer quantas rabanadas quiser no Natal e depois ainda ter pernas pra atravessar o mundo sem compromisso com as calorias.
Igualdade é diluir o próprio preto no branco. É permitir que os opostos coexistam. É perceber que, na verdade, os opostos sequer existem.
E dualidade, por fim, é desconfiar que nada disso é verdade. E que o único fato ambíguo verdadeiramente inquestionável em todo o planeta é que o Rio continua lindo; e que continua sendo o purgatório da beleza e do caos. O carioca é a mais completa tradução da máxima neofrancesa liberté, egalité, dualité que minha mancha facial me obrigou a inventar.
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Feliz 2010 a tutti!
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