Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

quinta-feira, julho 10, 2008

Leia jornal, mas não me chame.

Uma vez eu fui ao teatro com minha musa-mór, a Gabi Amaral, para assistirmos, sentadas, à Comédia em Pé. Era uma segunda ou terça-feira, chovia, e eu juro que não vou ficar tentando explicar porque o teatro estava vazio apesar de a peça ser excelente e custar só R$15 (ou R$10, ou R$8, não sei; só me lembro que gastei 5 vezes mais em chope depois). Poderia dizer que o teatro estava vazio porque brasileiro gosta mesmo é de novela, de final de futebol, gosta de beber e dirigir, de comer e fumar, GOOOOOOSTA de dizimar a água potável do planeta lavando sua calçada e seu chevete 86 diariamente, mas hoje eu acordei com uma vontade (muito tênue) de tentar ser suave, então não vou entrar no mérito dessa questão. O fato é que a peça, excelente, foi apresentada a uma platéia de 10 amigos, 10 amigos de amigos e 3 ou 4 outras pessoas que estavam ali só pra escapar da chuva. Sorte minha estar lá naquele dia, porque o Fernando Caruso me livrou de um peso que vinha me esmagando a auto-estima: ele, como eu, não lê jornal.

Sendo filho de um cartunista político importante que estampa a primeira página de um dos principais jornais do Brasil há tanto tempo que o tempo nem tinha sido inventado ainda, o ator Fernando Caruso ficou, como eu, tentando justificar sua falha de caráter: jornal, pra ele, é o papel onde seu cachorro faz xixi; o pobre cão deve ficar muito confuso de ver o dono, sujeito que deveria dar o exemplo, lendo seu papel higiênico. Ninguém deveria ler o papel higiênico dos outros, isto é uma invasão de privacidade sem limites. Mas o principal motivo do Fernando para não ler jornal é também um dos meus: se todo mundo lê jornal e comenta, então lerei outras coisas que ninguém pode ler por mim. Assim ganho tempo.

O Fernando Caruso revelou ter passado a adolescência inteira com medo de chegar na escola e ser sabatinado pelos colegas sobre os personagens da charge do dia de seu pai. Imagina a pressão sobre essa criança: ele não podia identificar o Sarney pelo bigode ou o Itamar pelo topete, também tinha de saber quem eram aquelas outras pessoas todas, tinha de saber porque eles estavam caracterizados como bandido ou cowboy e precisava dar explicações políticas pros amiguinhos que, como ele, não liam jornal (mas fingiam que liam). Ele dizia essas coisas na peça e eu sentia uma empatia tão grande que, naquele momento, cheguei a sentir amor por ele. Era tanta compaixão que eu poderia ter transado com ele simplesmente para recompensá-lo por todo o sofrimento naquela fase da vida em que as feridas são mais profundas.

Como disse o Caruso filho, para a sorte dos não-leitores ortodoxos de jornal, não existe nenhuma sociedade secreta de leitores de jornal que possa sacanear os não-leitores pelo pecado capital da não-leitura. Nenhuma notícia de relevância crucial, como a necessidade de ajustar os ponteiros do relógio no horário de verão, é mantida em segredo apenas para aqueles que lêem jornal. As pessoas falam, perguntam se você ajustou seu relógio, colocam um post-it em sua mesa, enfim, é perfeitamente possível viver bem e pontualmente sem ler jornal. É por isto que nós, não-leitores ortodoxos de jornal, não corremos o risco de ser barrados no baile porque desconhecemos a principal manchete do dia ou não reconhecemos as caras estampadas na charge do Chico.

A gente, que não gosta de ler jornal, pode, de uma hora pra outra e sem aviso prévio, passar a ler. Ou voltar a ler, como seria o meu caso, porque já houve tempo em que eu lia tudo, da primeira página ao Prosa e Verso, mas é bem verdade que ultimamente eu raramente me arrisco além do segundo caderno e da revista de domingo. Adoeço com facilidade e sou muito impressionável, a ponto de passar meses deprimida quando descubro que brasileiros, pessoas que falam a minha língua afetiva, estão atirando crianças pela janela. Da mesma forma, não pode ser bom pra saúde de ninguém saber pormenores do relaxamento da prisão do Dantas ou das últimas mortes provocadas por PMs. A mim, basta saber que os filhos de meus amigos choram, gritam e fazem xixi nas calças quando vêem policiais nas ruas. É saber disso pra saber que não posso saber de mais nada, não suporto mais tanto horror e iniqüidade. O que dizer pra uma criança que se borra ao ver um PM, figura que deveria povoar o imaginário mágico infantil como mocinho, e não bandido? Não chore, querida: em Oz é tudo bem melhor, vamos, estamos perto do portal?!? Mais fácil que isso é não ler jornal.

Antecipo semanas, senão meses, de luto pelo menino João, 3 anos, que foi enterrado com sua fantasia de Homem Aranha depois de ter sido exterminado por dois policiais militares. Se algum notícia boa surgir nesse ínterim, por favor, me avisem. Quem sabe eu não me animo e volto a ler jornal?