Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

terça-feira, março 10, 2009

O intrigante caso do elefante partido

Quando nós éramos pequenos, minha mãe tinha mania de elefante. Na década de 70, era comum encontrar uma criatura com mania de cristais, de pintinhos de feira de filhotes, de mini cactus ou de coleções de coruja, mas elefante era um hábito consumista discretamente mais raro. Minha mãe era uma hippie concursada, então podia comprar seu próprio patchouli, alimentar sua mania de elefantes e o amor indisfarçado pela Índia. Na verdade, imagino que a mania de elefantes era um vício que ela pouco sustentava, porque como todo mundo sabia que ela colecionava elefantes, mamãe vivia ganhando exemplares exóticos - de espelho pra combater mau-olhado, de sândalo indiano e daquela coisa peludinha que avisa se vai chover ou fazer sol - de parentes e amigos que voltavam de viagem. Ela ficava toda feliz com os presentes e ajeitava todos sobre um móvel ou dois da nossa sala, e todos com a bundinha virada pra porta de casa.

Diziam que elefante de bunda pra porta dá sorte, só que até hoje eu acho que a superstição verdadeira deve ter tido origem em alguma lenda urbana indiana envolvendo elefantes verdadeiros na casa de pessoas sortudas. Minha lógica era:
1. Enfie um elefante em sua casa;
2. Se ele não destrui-la, então você deve ter muita sorte.

A bunda do elefante voltada pra porta apenas reforça minha teoria: com força de vontade e algumas marretadas, muitas pessoas poderão conseguir a façanha de introduzir um elefante em sua própria casa, mas uma vez porta adentro, convém não manobrar o trombudo mamífero no hall de entrada, senão ele quebrará o que ainda permanece intacto. É só por isso a bunda do elefante deve ficar voltada pra fora: pra facilitar a ré.

Coitada da minha mamma: era difícil ter 3 filhos e tantos elefantes. Não sei exatamente como acontecia porque eu era pequena (essa é a minha desculpa), mas sua coleção costumava sofrer baixas diárias, porque não raro eu e minha irmã coletávamos alguns elefantes para tomar banho conosco ou para andar de bicicleta, sei lá. Como eu disse, eu não sei como a gente fazia, só sei que a gente tinha um fascínio desesperado por aqueles elefantinhos todos, tínhamos necessidade de tocar e, invariavelmente, destruíamos um ou outro. Lembro com tristeza do dia em que minha mãe comentou que agora restavam tão poucos elefantes que cabiam todos numa mesinha só. Na minha fantasia infantil, ter três crianças anulava a sorte de ter elefantes com a bunda voltada pra porta, porque três crianças juntas possivelmente causam mais destruição que uma manada de elefantes de verdade.

Foi então que mamãe resolveu partir pro contra-ataque, comprando elefantes tão grandes e pesados que nós jamais poderíamos carregar em nossas brincadeiras. Um desses elefantes tinha o tamanho de um poodle de 6kg e ficava sobre a mesa da sala tentando a gente. Passamos meses sem bulir com ele, até que um dia minha irmã falou:

- Esse elefante podia ser nosso cachorro.

Eu achei a idéia ótima, colocamos uma coleira nele e o carregamos pro fundo da sala, onde o resto dos nossos brinquedos estavam espalhados pelo chão. Brincamos, brincamos e brincamos, até que, na hora de colocar o elefantão pesadão no lugar, minha infanta irmã não suportou o peso do paquiderme de gesso e pluft, deixou-o espatifar-se no chão. "Ca-ra-ca!", pensamos. Pra mamãe perceber que o elefantinho de sândalo perdeu a tromba, passaram-se só dois dias, mas como, nesta vida, ela poderia não notar que seu elefantão de mesa sumiu? Pensei rápido e dei minha solução: vamos falar a verdade. A verdade é sempre menos indolor. Minha irmã, que sempre foi mais vaselina, preferiu evitar a verdade, mas também sem falar uma mentira. "Como assim?", quis saber. E aí ela revelou sua incrível mente criminosa:

- Quando o elefante caiu no chão, sua bunda se espatifou, certo? Portanto, nem pensar deixar essa bunda virada pra porta na mesa da sala.
- OK, estou acompanhando.
- Mas a cabeça está praticamente perfeita, e ele ainda está quase estável sobre 3 patas, certo?
- Certo. Então você quer tentar colar esses 237 pedaços que quebraram?
- Não, animal! Vamos colocar o elefante atrás do sofá. Assim a mamãe só verá a parte boa dele.

Tive de morrer de rir. Só a demente da minha irmã pra pensar numa coisa dessas. Protestei:

-É lógico que a mamãe vai perceber que o elefante sumiu da mesa! É lógico que ela vai achar estranho ver só a trombinha dele saindo por trás do sofá! Deixe de ser maluca e vamos falar a verdade: foi um acidente!

Mas minha irmã teve muito medo de contar a verdade e preferiu agir assim. Como principal culpada, por ter tido a idéia de usar o elefante como cachorro e depois quebrá-lo (eu fui apenas cúmplice), ela tinha todo o direito de fazer o quem bem entendesse, mas eu combinei com ela que, se sobrasse pra mim, eu ia dizer que queria ter contado a verdade desde o início. Ela concordou e escondeu a parte quebrada entre o sofá e a mesinha do abajur, no fundo da sala, bem pertinho da janela. E a janela da nossa casa é uma coisa boa, sabe? A gente vai lá toda hora pra pegar um vento, pra ver a vista bonita, enfim: qual é a chance de um elefante partido estacionado ao lado da janela permanecer incógnito numa casa tão pequena?!? Eu dei pra minha irmã seis minutos, mas passaram-se seis dias e até seis meses antes que minha mãe percebesse.

As faxineiras que passaram por nossa casa naquele período -- de alta rotatividade -- foram instruídas a deixar o elefante ali mesmo e não dizer nadinha. Minha irmã era uma fofa com as faxineiras: todas a adoravam e faziam de um tudo para agradá-la. Ela teve sorte nesse aspecto, porque uma super nanny da vida certamente ferraria com a vida dela, pois mentir pra mãe is totally unacceptable!

De minha parte, a cada dia que passava e minha mãe não dava falta do elefantão de mesa, eu me desesperava ainda mais. Eu simplesmente não podia acreditar numa coisa dessas: se minha mãe podia perder um elefante, ela também poderia perder a gente! E se ela perdesse a gente, seria uma péssima mãe, e taí uma hipótese angustiante que eu não conseguia suportar. De forma que eu comecei a mandar indiretas paquidérmicas, mensagens subliminares pra ver até que ponto minha mãe era perigosamente distraída. Eu perguntava:

- E aí, mãe? Nunca mais comprou elefante pra sua coleção... Está ficando pequena, né?

Ou então:

- Nossa, essa mesa está tão vazia! Acho que a gente deveria enfeitá-la com alguma coisa.

Minha irmã pulava que nem um macaco atrás da minha mãe, fazendo caretas pra me fazer calar a boca. Mas mamãe, ó, nem tchuns!

Foram meses em que minha irmã queria me matar. Ela se desesperava. Eu comecei a chantageá-la, porque irmão mais novo serve pra isso mesmo: pra sofrer na mão dos mais velhos defensores da verdade:
- Ou pega um copo d'água pra mim, ou eu levo a mamãe pra conhecer o elefante depois da plástica que você fez nele.

E ela me obedecia direitinho, só que isso me frustrava: não era um escravo que eu queria. Eu queria que A MINHA MÃE REPARASSE, PÔ! A mãe da gente tem a obrigação moral e cívica de ser a pessoa mais esperta do mundo, e não a mais distraída! O clima foi ficando pesado pra minha irmã, que tinha medo de ser descoberta; pra mim, que tinha medo de ter sido trocada na maternidade; e pro elefante, coitado, que merecia um enterro digno por todos os serviços prestados como cão de mentira, e que estava lá, agonizando em poeira, havia meses!

Então um dia o milagre aconteceu: não sei como, mas minha mãe olhou pro sofá e viu, no diminuto espaço entre este e a mesinha do abajur, algo que se assemelhava a uma tromba ereta e uma pata de elefante. Ela não entendeu porque a faxineira tinha colocado o elefante ali, mas quando o viu todo quebrado, entendeu o motivo. E pra ela fez muito sentido, porque afinal a última faxineira tinha desaparecido do mapa. Neguinho quebra o elefante dos outros e depois nunca mais volta com medo de ter o elefante descontado do salário.

Levamos talvez uns 5 ou 7 anos pra contar a verdade, pois a verdade provisória era muito melhor que a nossa versão. E minha mãe nunca mais colecionou elefantes, porque enquanto eram seus filhos quebrando os bichinhos, tudo bem, mas faxineira também era de lascar!

***

E eu só estou contando esse causo enorme hoje porque é aniversário da minha adorada mãezinha, e eu quero muito dizer que não foram todos aqueles elefantes que me deram a sorte que eu tenho até hoje, mas sim você, mamazulika. Feliz aniversário, um beijo e um queijo da sua filhota pé-de-pano.

PS: Hoje também é aniversário da nossa Princesa Radija, que nasceu no dia da minha mãe só pra abrilhantar ainda mais o dia dez de março, um dos dias mais bonitos e importantes do ano, perdendo talvez apenas para o Natal, na minha modesta opinião de filha.