Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

terça-feira, junho 19, 2007

A escola.

Tá certo que parecia uma escola, mas a fachada austera e o hall de mármore frio, com escadas suntuosas, já davam pistas inequívocas de que se tratava de uma escola careta. Ao passar pela inspetora na entrada, foi constrangida a suspender a meia e desdobrar o cós da saia para que a bainha lhe cobrisse os joelhos, como preconizam as normas. De má vontade e torcendo pra que uma bomba demolidora caísse do céu e acertasse certeiramente o coque envernizado da inspetora, ela ajeitou o uniforme e atravessou o macabro portal para uma outra dimensão. Neste mundo novo, ela via todas as coisas em tons de sépia, à exceção dela mesma e dos fachos de luz que desbravavam o universo paralelo amarelo com sua luz incrivelmente branca, devolvendo a cor supostamente original a trechos alternados dos murais com trabalhos de alunos.

Ainda fascinada com a alternância entre o amarelo e a vida, entrou na sala da 5-B com a apreensão normal de qualquer criatura em seu primeiro dia de aula: é claro que ela queria gostar da nova escola e dos novos amigos e professores, mas ela já era madura o bastante pra saber que nenhuma escola é melhor que a última, até que, na melhor das hipóteses, seja a última ela mesma. Só havia uma carteira livre na sala e, ela não pôde deixar de notar, embora cheia, a sala parecia vazia. Vazia de calor humano: nenhuma criança conversava, nenhuma dormia, cantarolava ou olhava pela janela (embora o mundo lá fora fosse de um colorido convidativo). Sentiu enfado quando a professora entrou, disse bom-dia, e todos responderam em uníssono: "Bom dia, professora". Abriu o caderno e pôs-se a anotar a primeira lição do dia.

Primeira lição do dia: MODERAÇÃO
Moderação significava não ser nem demais, nem de menos. Numa escala de zero a dez, moderação era ser cinco. No máximo seis e meio. Ou seja: ficar no meio, ser medíocre, mas, "vejam bem", disse a professora, "ser medíocre é uma coisa boa, porque a moderação é uma virtude". A primeira lição ficou engasgada em sua garganta. Precisou sair pra beber água (a professora deu-lhe autorização, mas desde que ela fosse sem correr, ou seja, com moderação) para ajudar a descer aquele nó que, de tão grande, parecia até um sapo-boi enviesado na goela.

Quando voltou da água, sentindo o sapo-boi inflar em seu estômago a ponto de quase voar, a professora já ditava a segunda lição.

Segunda lição do dia: PRUDÊNCIA
Prudência era um conceito abstrato demais pra ela, e a professora precisou repetir mil vezes, sem perder a PACIÊNCIA (esta seria a sexta lição do dia), até que ela compreendesse e repetisse, em suas próprias palavras, que prudência é assim, né?, uma outra virtude (a professora a obrigou a dizer que era uma virtude) das pessoas que não querem - e nem vão!, que elas não são bestas - se machucar. A pessoa prudente raramente se machuca, mas também raramente sai de casa, vai ao cinema, pega uma praia, enfim: prudente é aquele que tem pouco ou nenhum contato com o mundo technicolor. A pessoa prudente demais pode ter até uma síncope se der de cara, por exemplo, com a cor vermelha. O bom prudente só vê coisas amareladas e bem delimitadas, dentro de seu estreito círculo de confiança.

Durante a sabatina, enquanto ela ia dizendo pra classe o conceito de prudência com suas próprias palavras, a professora ficou roxa, as crianças ficaram lívidas e houve um menino que ficou colorido de novo, como se a desmoralização inocente da prudência o tivesse curado de sua chatice-sépia. Ele então aproximou-se, segurou-lhe a mão e pediu-a em namoro. Ela aceitou, é claro, pois prudente não era, mas exigiu: vou contigo pra onde você quiser, desde que a gente mude de escola.

Mudaram. E tiveram um feliz ano letivo. Para sempre.

(For Jacob)