Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

sexta-feira, junho 05, 2009

O livro preto

Todo estabelecimento que se preze tem um livro preto pra que o cliente registre reclamações. O livro preto, em tese, também serve para o registro de sugestões e elogios, mas todos sabemos que quase ninguém perde seu precioso tempo elogiando ou edificando o outro, de forma que o livro preto se tornou um ícone do esporro, um banco de dados medieval com páginas numeradas que registra, para todo o sempre, a indignação de um cliente, tendo ele razão ou não. O pior do livro preto é que ele é público. É como guilhotinar a cabeça de um criminoso e deixá-la exposta em praça pública pra que todos vejam que o crime não compensa.

Experimentem chegar numa repartição qualquer, privada ou pública, e dizer: "Eu quero o livro preto, e quero já!". Todos os funcionários tremerão nas bases. Uns por medo de ter seu passado obscuro revelado, outros por medo de terem a honra maculada por uma reclamação perpétua. Ante tão perturbador pedido, que paralisará toda a repartição, o funcionário mais velho da casa abaixará os olhos, abrirá o claviculário com uma chave que pende de sua cintura, pegará um molho de chaves que ninguém nunca usa, abrirá o ficheiro do final do corredor e de lá trará até o balcão de atendimento um livro preto de capa dura com as orelhas rotas onde se lê na capa: "RECLAMAÇÕES". Em tom solene, o funcionário entregará o livro ao cliente como quem dá um filho seu ao carrasco. Uma vez que o cliente ponha suas garrinhas no livro, todos na repartição fingirão voltar a seus afazeres, mas todos tentarão passar pelo balcão de cinco em cinco segundos pra ver o nome de quem está sendo maculado para todo sempre naquelas mal traçadas linhas.

A maior glória de um cliente é abrir o livro preto pra fazer reclamação contra um fulano e lá encontrar outros registros contra esse mesmo fulaninho, um verme desprezível que afinal já deveria ter sido demitido há muito tempo! O cliente queixoso profissional fará uma busca nas reclamações anteriores pra verificar o grau de reincidência do miliante e poder acrescentar a seu texto: "Observem que esse tipo de falha já está internalizado no comportamento do supracitado funcionário - vide reclamações dos dia tais, nas página tais." Esqueçam a democracia e o reforço positivo: nada surte efeitos tão imediatos no ser humano quanto a manipulação macarthista. O livro preto é um resquício da ditadura.

Não é só o cliente que se vale do livro preto pra semear a cizânia. Os próprios funcionários do estabelecimento gostam de basear cientificamente suas fofocas nele:
- Nossa, fulano é um fofo queridíssimo, não é mesmo?
- Hum, há controvérsias: em 1978, fizeram uma queixa dele no livro preto.
- Jura?!? Eu jamais poderia imaginar uma coisa dessas!
- Pois é, menina, pra você ver como as aparências enganam...

***

E eu falei tanto assim do livro preto porque ontem, num dia agitadíssimo na clínica, em que os clientes estavam particularmente revoltados com a velocidade do nosso atendimento (alguns casos demoram mais do que outros, e ontem estávamos cheios de casos complicados), o diretor entrou na minha sala pra dizer que tinham feito um registro contra a equipe de clínica médica no livro preto. Eu estava com um termômetro enfiado no reto de um Yorkshire quando recebi a notícia, e este não é o melhor lugar para se estar num momento desses. Meu diretor percebeu que eu fiquei abaladíssima, e disse:
- Não se preocupe. Não foi nada de mais.

Falei pro meu colega de equipe que tínhamos de consultar o livro preto pra ver que tipo de merda tão irreversível havíamos feito pra merecer uma coisa dessas (o livro preto é uma espécie de superego externo) e ele também ficou um pouco abalado, mas seguimos com nossas rotinas, com nossos cachorros e nossos gatos, porque a vida é isso aí: a vida segue! Quando liberamos o último cliente, o expediente já estava encerrado havia muito tempo, de forma que o livro preto já estava completamente trancafiado no arquivo do fim do corredor com chaves que só o funcionário mais antigo da casa seria capaz de identificar, e por isso ficamos sem saber o que foi reclamado de nós. Sem dizer uma palavra, parecia que nós dois revisávamos mentalmente todas as palavras proferidas e gestos daquele dia pra ver onde poderia estar a fonte da reclamação. Despedimo-nos com um abraço cúmplice e palavras carinhosas:
- Obrigada por drenar o tórax daquela gatinha pra mim; ela não teria chegado à UTI daquele jeito.
- E você fez muito bem de puncionar a bexiga daquele cocker com obstrução uretral. Com a dor que ele estava sentindo, não seria bom candidato a cirurgia alguma.

Então fomos pra casa com a forte sensação de dever cumprido, mas com a ciência triste de que nem sempre nos reconhecem pelos nossos méritos, e sim pelos nossos deslizes.