Este é o meu quartinho de bagunça. Da embalagem vazia de Chokito ao último livro do Saramago que eu não terminei de ler, você encontrará aqui de tudo um pouco.

domingo, maio 31, 2009

Ajudem uma veterinária semi-carente a encontrar um homem pra chamar de seu

Aproveitando que meu superego maldito foi dar um rolé e se perdeu de mim, na vida, resolvi iniciar uma campanha para me descolar um namorado. Não precisa ser assim, nenhum príncipe encantado, mas definitivamente não pode ser sapo, porque sapo é coisa que eu não engulo mais.

Eu acho super fácil gostar de mim, sobretudo quando meu superego maldito está ausente (é quando eu me sinto mais fofa). Então o senhor, que é livre e desimpedido, bem apessoado, bem disposto, que acorda cedo - senão tá ferrado comigo! -, neura-free, free-style, entre 30 e 50 anos e morador da cidade do Rio de Janeiro, está aí parado fazendo o quê? Mexa essa bundinha e escreva agora mesmo para mulhersolteiraprocura arroba gmail ponto com dizendo que tipo de namorado você daria (com ou sem trocadilhos, por favor). As melhores cartas ganharão um encontro comigo, ao passo que as piores serão publicamente escrotizadas no VanOr Responde, minha coluna sentimentalóide fadada ao esquecimento por falta de quórum. Prometo manter o anonimato das vítimas, até porque sou temente à lei dos homens e, obviamente, tementíssima da silva a Deus.

Quem procura namorado tem de acreditar em Deus, Papai Noel, Coelhinho da Páscoa e o carajo a quatro. Enquanto não morrer a esperança, eu hei de lutar! Como eu não tenho 3700 reais pra pagar uma equipe de psicólogos recém-formados pra cruzar meu perfil psicotécnico com os dos 3 únicos clientes esquizofrênicos pagantes do almoço-pra-dois, vou lutar com as armas que eu conheço. E o blog é só uma delas. Homens solteiros do Rio de Janeiro, tremei!

Eu estou de parabéns!

Corri 16,09km em 1hora, 50 minutos e 51 segundos na prova da Mizuno, hoje. Fui conversando durante todo o percurso e mantive o ritmo calmo que eu me propus, do início ao fim, sem me impressionar com as pessoas que passavam batidas por mim. Eu estou de parabéns!

Este realmente não é o melhor momento pro meu superego malditão voltar pra casa. Ele até pode voltar, mas vai ter de dormir na casinha do cachorro até meu grau de merecimento do autoelogio cair um pouquinho.

PS: eu torço pra que meu superego maldito esteja se divertindo na minha ausência, porque, se tem uma coisa que eu não suporto, essa coisa é a chantagem emocional.

"Quando voce me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer

Olhos nos olhos
Quero ver o que voce faz
Ao sentir que sem voce eu passo bem demais"
(Chico Buarque, "Olhos nos olhos")

sábado, maio 30, 2009

Como tiranizar o superego maldito

De um mês pra cá, adotei a prática do autoelogio pra aplacar a fúria do meu superego maldito. O superego maldito é aquele que rivaliza com o superego bonzinho nas autocríticas. Se eu bebo demais, por exemplo, o bonzinho diz: "Ó, já chega tá? Você já bebeu demais, melhor parar senão amanhã vai encarar uma ressaca braba", ao passo que o malditão rosna: "Tá vendo?! Não sabe beber e acabou enchendo a cara! Você não tem jeito mesmo, não tem limites, não tem controle, nao tem vergonha nessa cara safada!" Como o maldito é sempre mais eloquente, é nele que eu acabo acreditando. Depois de tantos anos acreditando no mau, nem preciso dizer que minha autoestima, ó: andava super desmoralizada. Já que eu me autoescrotizo super bem, precisei implementar o autoelogio pra trazer minhas narinas acima da lama em que me afundei ao longo da vida e, assim, voltar a respirar os ares azuis de uma existência leve.

O autoelogio, como o nome bem diz, é o ato de elogiar a si próprio. Como eu andava bastante cabisbaixa, comecei a me elogiar por qualquer pequenina tarefa executada - do uso do fio dental à leitura diária do jornal -, pra ver se eu me animo a executar tarefas um bocado maiores, como ler (e entender) Nietzsche ou correr uma maratona. Sendo assim, toda vez que termino um treino de 8km, que está alguns bons 34 km aquém duma maratona propriamente dita, tasco-me uns beijinhos no dorso da mão ou nos ombros e digo:
- Muito bem, que boa menina, correu muito bem! Está de parabéns!

Também faço isso quando chego (parabéns, chegou!) e saio do trabalho (parabéns, trabalhou!), termino uma tradução, lavo uma pilha de louça, esfolio meus pés, guardo minhas roupas no armário, bebo 2 litros de água por dia, reciclo lixo ou apago as luzes quando sou a última a sair de um cômodo. Fiquei viciada nos meus elogios, e quanto mais eu me parabenizo, mais sinceros ficam meus efusivos louvores. Com isso, obviamente, meu superego maldito ficou deslocado e acabou fugindo de casa só com a roupa do corpo. Inicialmente, eu pensei: Ah, é? O cara não sabe de tudo? Não critica tudo? Agora quero ver ele se virar sem dinheiro nem pra passagem. Quero ver ele sobreviver à violência urbana. Quero ver é ele se fuder!!!

Passei uns dias me elogiando direitinho: você é ótima, seu superego é que é maldito. Isso de fugir é coisa de gente maldita. Deixa ele pra lá, que galinha de casa não se corre atrás!

Mas agora, que já passou a irritação, eu venho por meio deste humilde postzinho fazer um apelo: se vocês encontrarem meu superego maldito todo estropiado, vagando maltrapilho por aí, por favor avisem ao cara que ele já pode voltar pra casa, porque, mais um pouco, e eu vou me chamar Pollyanna e sair por aí dizendo que a existência é uma gracinha e Deus é um super fofoletão. Isto pode acabar me complicando, porque afinal, rélôu: eu sou brasileira e moro no Rio de Janeiro.

Malditinho, please: estou ficando esquisita sem você. Juntos, sobreviveremos! (Mim sem-noção. Mim precisar tuncê.)


Marcadores: ,

sexta-feira, maio 29, 2009

Profissão: castradora de Bagé

Como qualquer médico veterinário consciente, sou absolutamente a favor da castração pré-púbere de cães e gatos. Aliás, basta meio neurônio parcialmente funcional para ser absolutamente a favor da castração de cães e gatos antes do puberdade, e talvez por isso eu seja tão passional em relação a este assunto. Estou ciente de que existem pessoas não tão espertas no planeta Terra, mas mesmo os mais lentos precisam entender que não há nada a entender: é só castrar, e pronto. E quando o proprietário não quer castrar seu bichinho, meu amigo... eu desço do salto e extravaso o pior do meu mau humor:

Situação castradora 1: canino de raça pompom, 3 anos, gravatinha no pescoço, macho, 6,5kg
- É castrado?
- Não! Tadinho, claro que não!
- Tadinho por quê?
- Ah, tadinho, imagina se eu vou deixar cortar o pipi do meu bebê...
- O pipi fica, as bolinhas saem. É rápido, o pós-operatório é incrivelmente simples, você vai evitar que seu bebê tenha filhotes que pararão nas mãos de pessoas malucas, além de prevenir diversas doenças, como a hiperplasia de próstata, a prostatite, hérnias perineais, tumores venéreos, etc. E o que é melhor: é de graça!
- Ah, não. Meu bebê sem pipi não fica!
- Que parte de "a gente não arranca o piru na castração" a senhora não entendeu?

Situação castradora 2: canino de raça mini-mini-extra-toy, 1 ano, fêmea, 2,5kg
- É castrada?
- Não.
- Por quê?
- Porque ainda quero tirar uns filhotinhos dela.
- Por que não tira uns filhotes da sua barriga e deixa sua cadela em paz?

Situação castradora 3: canino de raça fofoletóide, 2 anos, macho, 7 kg
- Castrado?
- Não.
- Por quê?
- Porque eu queria que ele namorasse.
- Por que não namora você e deixa seu cachorro em paz?

PS: Na verdade, pra essas pessoas, eu gostaria de dizer: por que não trepa com seu próprio pau e deixa o do seu cachorro em paz? Ou por que você não procura ajuda profissional pra saber porque você tem de trepar com o pau do seu cachorro? Mas essas coisas eu não posso dizer, porque se eu partisse pra esse tipo de argumentação, seria obrigada a pôr um divã no meu consultório e acabaria processada pelo CRP por exercício ilegal da profissão.


Situação castradora 4: canino sem raça muito definida, 9 anos, fêmea, 20 kg
- É castrada?
- Não, mas também é virgem, nunca cruzou.
- Vamos castrar então?
- Ah, agora que ela tá tão velhinha?
- Quer esperar ela ficar bem doentinha, entre a vida e a morte por causa duma piometra, pra castrar de emergência?
- Ah, não.
- Ah, bom!

Situação castradora 5: canino de raça dita feroz e truculenta, 6 anos, macho, 35 kg
- Por que não castrou?
- Não quero que meu cachorro vire a bicha da rua.
- Com ou sem testículos, seu cachorro nunca terá dúvidas sobre a própria masculinidade. Você tem sobre a sua?

***

Por outro lado, quando chegam ao meu consultório animais castrados, eu abro minha caixinha de parabéns e distribuo medalhas e beijinhos pras pessoas que merecem. Minha campanha feroz diária pela castração também se vale do reforço positivo.

***

Nem preciso dizer que, para todas as pessoas desprovidas de bloqueios afetivos à castração - contra a subjetividade, não há argumentos racionais que bastem - e que querem entender porque castrar é a melhor opção, eu tenho toda a paciência do mundo para dar as seguintes explicações (adaptação de um post e email enviado à Jussara S. sobre o tema):

Castrem seus animais, mesmo que sejam de raça pura. Animais raça pura, se forem inteiros, podem fugir e nunca mais voltar às mãos do dono se encontrados por um mercenário. O mercenário vai prostituir o animal de raça pura para lhe vender as crias. Criação é para criadores profissionais, que teoricamente sabem selecionar matrizes para evitar doenças transmitidas hereditariamente. Animais de leigos devem ser castrados sempre. A castração oferece várias vantagens à saúde dos animais (previne tumores mamários e evita a piometra em fêmeas, e as doenças da próstata, tumores testiculares e venéreos e a hérnia perineal em machos) é gratuita na cidade do Rio de Janeiro.

Idade ideal para castrar

A idade ideal para a castração é ainda um tema controverso. Não porque a ciência não tenha chegado a um denominador comum neste campo, mas sim porque muitos veterinários ainda têm mania de tirar idéias malucas e conceitos empíricos da cartola. Se um insight empírico desses rendesse ao menos um prêmio Nobel da Ciência, vá lá, mas não há casuística nobelística envolvendo veterinários que não frequentam congresso, e esta é a mais dura realidade. A criatividade não é a melhor amiga do médico.

Há duas correntes autodenominadas "científicas" sobre a época ideal para a castração de cães e gatos:

1) A do Hoskins, autor do livro de pediatria veterinária mais famoso do mundo, que preconiza a castração pré-púbere (antes do primeiro cio) para reduzir quase a zero a incidência dos tumores mamários - uma dura realidade da maioria das cadelas de terceira idade castradas tardiamente ou não castradas.

2) E a corrente "do contra", formada por veterinários que observaram que alguns animais castrados precocemente (machos, em maioria) apresentaram incontinência urinária na idade adulta. Esta hipótese científica (castração precoce = incontinencia urinária adulta) foi derrubada por um estudo sério feito no início da década de 1990 na Universidade da Flórida com gatos, que provou que a castração pré-púbere (entre a sexta e a décima quarta semana de vida) não interfere na saúde do trato urinário. O único efeito colateral do procedimento, se é que se pode chamar assim, é o aumento do tempo de crescimento esquelético, o que pode tornar os animais mais "altos".

Para saber sobre esse estudo da Flórida, procure o seguinte artigo: Developmental and Behavioral Effects of Prepubertal Gonadectomy. Mark S. Bloomberg, DVM, MS; W.P. Stubbs, DVM; D.F. Senior, BVSc; Thomas J. Lane, BS, DVM; University of Florida at Gainesville.

Nem preciso dizer que qualquer veterinário bem informado de 1992 pra cá adota a preconização do Hoskins. Como a faixa etária da castração pré-púbere é ampla (da sexta semana ao quinto mês de vida), eu particularmente recomendo que o animal seja propriamente desmamado, vermifugado e completamente vacinado antes da castração, que é, afinal, uma cirurgia eletiva - portanto pode esperar até que o sistema imunológico esteja maduro e devidamente fortalecido.

O site da American Veterinary Medical Association (AVMA) sutilmente recomenda que a castração seja feita antes do primeiro cio, mas não é incisiva quanto a isto justamente porque, NOS EUA TAMBÉM, HÁ VETERINÁRIOS QUE INEXPLICAVELMENTE AINDA ESPERAM PASSAR O PRIMEIRO CIO PRA CASTRAR sem que o animal tenha qualquer problema de saúde que impeça o procedimento. Para ler o que diz a AVMA, entre em: http://www.avma.org/animal_health/brochures/spay_neuter/spay_neuter_brochure.asp

Se uma cadela não for castrada antes do primeiro cio, obviamente não se pode afirmar que este animal terá câncer de mama por isso, pois há incontáveis variáveis genéticas e ambientais envolvidas na patogenesia do câncer. Porém, por que correr esse risco se a castração pré-púbere é uma das únicas variáveis que a gente pode controlar?

terça-feira, maio 26, 2009

Memória da pele

Depois de ver Budapeste, depois de ler Budapeste e depois de passar dias com a exótica sensação de que eu tenho de fazer mais uma tatuagem senão eu vou morrer, senão eu vou explodir, senão eu vou perder o sentido, cheguei à seguinte conclusão: a memória nada mais é do que uma das funções sensoriais da pele; e, sem memória, a gente simplesmente não vive. Ou seja: esqueçam o cérebro, o coração ou o fígado: a pele é o órgão mais vital do corpo.

***

Hoje foi um dia bonito e um dia feliz. Eu passei as primeiras horas da manhã dizendo pra mim mesma: quero lembrar deste dia para sempre. Quero lembrar de todos os dias para sempre. Quero lembrar de tudo, quero lembrar das vozes, das fisionomias, dos nomes - meu deus, como eu esqueço dos nomes! -, quero me lembrar de um dia bom e comum, como este, e torná-lo eterno. Quero lembrar de um domingo banal, daqueles em que eu acordava ao lado dele, tentava dormir por mais 10 minutos, sentia vontade de cantar e ia pra cozinha preparar o café pra não acordá-lo com minha euforia matinal. Eu pegava o jornal na porta, lia as principais manchetes enquanto passava o café e fazia carinho na gata. E então me perdia nas palavras, nos aromas e nos minutos e aí, quando dava por mim, ele já estava de pé.

Eu quero lembrar de todos esses minutos, de todos esses passos, do ronronar da gata, do cheiro do café, do toque do jornal, dos passos dele subindo a escada, mas sinto a espinha gelar quando percebo que ele, na minha memória, é apenas um borrão: um vulto sem rosto e um corpo com pijama marinho de formas indefinidas que se locomove do mesmo jeito, à mesma velocidade, e tem a mesma voz, as mesmas falas, mas não tem rosto. Eu pressiono minha memória a resgatar esse rosto, mentalizo fotografias, mas tudo que vejo são poses estáticas, sorrisos congelados - alguns tristes, outros genuinamente felizes - e sinto um desespero extremo ao pensar que o fim está próximo: minha memória está se esvaindo e meu estoque de dias felizes está condenado a terminar em breve. Eu ainda sou capaz de sentir o cheiro da gata, o gosto do café, a textura do jornal, o canto matinal brotando em minha garganta, mas o rosto... do rosto, ainda que me esforce, eu não consigo me lembrar.

Eu sei como é esse rosto: eu vivi esse rosto; eu idolatrei esse rosto; eu olhei pra esse rosto por infinitas madrugadas, jurando que nunca mais iria parar de olhá-lo - mesmo que eu dormisse, mesmo que eu morresse. E ainda assim eu não consigo me lembrar dele. A minha pele me traiu. Dentre todas as coisas que ela poderia ter esquecido, esse rosto deveria ser sua última opção de esquecimento. Ele estava lá: logo embaixo dela. Guardado cuidadosamente embaixo da minha pele. E mesmo assim ela o perdeu, a ingrata!

Agora eu quero, eu preciso fazer uma tatuagem que me faça lembrar. Que não me deixe esquecer, nunca mais, de nenhum dia bom, de nenhum momento eterno. Na verdade, preciso de um desenho que interrompa, pelo menos por mais uns anos, o progresso do fim.

A vida começa a terminar quando a pele começa a se esquecer.

sábado, maio 23, 2009

Santo samba


Santo samba
Originally uploaded by Van-Or
Escravos da Mauá

sexta-feira, maio 22, 2009

Celularidade

Meu pai é a pessoa que mais perde celular na face da Terra. Ou ele perde, ou é roubado. A média é de 2 por ano. Ontem, ele perdeu o telefoninho pra um vendedor de amendoim, desses que passam deixando amostra grátis nas mesas de bares. O malandróide levou três aparelhos da mesa e ninguém notou. Como eu sou a titular de nosso plano família de telefonia móvel, lá fui eu pra loja esta manhã adquirir um novo aparelho e um novo chip. Eu escolhi o modelo mais simples - afinal, ele durará mesmo muito pouco nas mãos de seu dono - e optei pela cor preta, que é a favorita dos ladrões (às vezes dou vazão à minha romântica faceta Robin Hood).

Meu pai chegou nos minutos finais do atendimento, só pra catar o dele e partir pra sua atribulada vida de perdedor de celular. Já que ele estava ali, e já que ele sempre reclama dos aparelhos que eu arrumo pra ele (porque têm funções demais, são complicados demais, independentes demais, discam e fazem mil coisas sozinhos quando colocados no bolso da calça, etc...), perguntei se ele não gostaria de escolher um outro modelo. Isso porque o aparelho que eu escolhi recebeu uma crítica no tempo recorde de 4 segundos (não era ergonômico o bastante). Perdido, como sempre, meu pai solicitou a ajuda da vendedora. Eu lavei minhas mãos e só observei, porque eu gosto de ver o circo pegar fogo:

- O senhor gosta da Nokia?
- Com ou sem molho?
- Como o senhor preferir.
- Eu prefiro com molho.
- Ah, então esse aparelho que a sua filha escolheu é ideal pro senhor!

Detalhe: o aparelho que eu escolhi era um Samsung. A vendedora vai pro trono ou não vai?

***

Estava no meio de um pasto, em Cusco, com um grupo de turistas, quando escutamos o mugido de uma vaca. Alguma criatura do grupo alertou:
- O celular de alguém está tocando.

Todos verificaram seus aparelhos, mas nenhum estava tocando. Era uma vaca mugindo mesmo. Às vezes um mugido de vaca é realmente (apenas) um mugido de vaca.

***

Fico chocada quando vejo no jornal registros fotográficos de pessoas tendo os celulares roubados de suas orelhas por um pivete do lado de fora do ônibus. O que me choca nem é o assalto, em si, mas a interrupção da conversa. Eu acho uma falta de cortesia sem tamanho isso de interromper o outro no ato! Ter o celular arrancado da orelha em plena conversa telefônica corresponderia a ter a suculenta comida extraída do garfo em pleno vôo do prato à boca salivante; ou estar transando com alguém e, de repente, vê-lo desaparecer de baixo (ou de cima) de você. É o tipo de subtração que provoca uma enorme sensação de vazio e a certeza de que o mundo - ô mundo! - pode mesmo ser muito mau.

***

Ontem a Fabiana, nossa diarista, foi assaltada às cinco da matina no ponto de ônibus ao lado de sua casa, num bairro bastante proletário de New Iguaçu. A relação com este assunto é que, entre seus parcos pertences, o ladrão lhe tomou o celular. Fiquei revoltada com a situação: desde quando se assalta uma criatura num ponto de ônibus de Nova Iguaçu às cinco da manhã? Quem está num ponto de ônibus às cinco da manhã não tem, minha gente, na-da pra entregar prum cretino dum ladrão (exceto pelo celular, que celular é que nem opinião: todo mundo tem, mesmo que seja uma merda).

Quando fui assaltada em janeiro deste ano, também num ponto de ônibus bastante proletário da Central do Brasil, às sete da manhã, me ocorreu que os ladrões perderam completamente o bom senso e o espírito robin-rúdico de tomar dos ricos para dar aos pobres: eles agora tomam dos pobres, e foda-se! A culpa disso, obviamente, é a pandemia de corrupção que corrói este país: se até os políticos roubam do povo (e estão se lixando pra opinião pública, e nunca são presos porque sempre se safam na safadeza de foro especial), por que o povo não roubaria a si? O exemplo está dado, e ele vem de cima. Agora durma-se com este barulho!

E já que o tema é corrupção, o assalto da Fabiana me fez lembrar que ela é obrigada a pagar uma "mensalidade" para manter a milícia de sua área, mensalidade esta que ela certamente pagava com prazer até ontem porque tinha a falsa sensação de que estar contribuindo para a paz e segurança pública que o governo é absolutamente incapaz de lhe oferecer. A milícia é um retrato moderno da tomada do poder pelos porcos de George Orwell e, muito mais do que os assaltos a trabalhadores, me assusta saber que os milicianos invadiram o Planalto Central e chegaram pra ficar. Só o terrorismo ideológico pra nos salvar. Eu definitivamente doaria um rim à causa.

terça-feira, maio 19, 2009

L'Ours (1988) - the cougar scene

O Lucas me mandou na semana passada e eu chorei tanto!, mas tanto-tanto mesmo, que acho que tô precisando encontrar com aquele xamã charlatão que jurou - de pé junto - que eu não ia chorar nunca mais.

Um spoiler importante aqui pra tranquilizar as pessoas mais nervosas que, como eu, chegam à metade do filme com a certeza de que não dá pra ir adiante: nesta perseguição dramática de um bebê urso por um puma, tudo acaba bem.

Alguém sabe como este filme foi feito? É incrível a quantidade de takes e a proximidade das câmeras com os animais. Parece um filme impossível de fazer, e ainda tem trilha sonora pra gente chorar na hora certa! (nem precisava)

domingo, maio 17, 2009

Van'Or tá meio velhinha, mas ainda responde

Quando todos pensavam que a coluna tinha se esgotado por falta de cartas, eis que surge um inusitado correio sentimentalóide na caixa de entrada do vanorresponde arroba gemeio ponto com. Dizia mais ou menos assim:

Querida Vanor,

A gente não se conhece, mas eu te leio há tanto tempo que sinto como se te conhecesse, como se fôssemos amigas de longa data, etc. (Por favor, não me horrorize por isso.) Como temos a mesma idade (só que eu sou cinco anos mais moça) e somos mulheres solteiras no Rio de Janeiro, e me parece que você tem uma certa estrada, ou pelo menos muuuuuito mais estrada do que eu, resolvi te escrever pra ouvir um conselho de alguém mais experiente que não seja minha mãe. Porque minha mãe certamente surtaria se eu contasse pra ela um terço do que vou te contar agora: estou saindo com 3 caras diferentes, e um não sabe do outro. Eu estava levando a coisa na flauta, e coisa e tal, pra aplicar um psicotécnico aqui e ali e cortar os candidatos mais fracos nas eliminatórias, mas esses caras só melhoram com o tempo, então eu não consigo abrir mão de nenhum, pois um deles pode ser o homem da minha vida! O grande problema é que agora eu me vejo super requisitada num sábado, por exemplo, e tenho de dar meu jeito de jantar em Ipanema das sete às dez pra poder encontrar o outro na Gávea das onze às duas e partir pra saideira na Lapa de duas em diante. É uma rotina exaustiva, eu não aguento mais! Por favor, me ajude!

beijos,

Perereca do Brejo


Querida Perereca Ululante,

Antes de tudo, obrigada por dizer que temos a mesma idade e depois me avisar que você é cinco anos mais jovem (ou que sua bunda é cinco anos menos caída, tanto faz). Obrigada também por admirar minha quilometragem e observar que eu sou muito mais rodada que você. Pelo andar da carruagem, amiga, em breve eu estarei pegando conselhos contigo. Então vamos considerar este prólogo uma troca normalíssima de gentilezas semi-pontiagudas entre mulheres e partir pra análise semi-profissional de seu conflito psico-pegadológico.

Você diz que está saindo com três caras diferentes e aparentemente funcionais, e que se desdobra para dar conta dos três até decidir quem vai ficar com Mary. Querida, desapegue-se já! Esta sua ganância indecisa está dificultando a vida de pelo menos duas outras mulheres solteiras que não teriam dificuldade alguma para decidir o que você não consegue. A fila tem que andar, a regra é essa, mas enquanto você se trancar no banheiro por horas só pra retocar o batom, toda a mulherada lá fora vai te odiar; e enquanto você for odiada por todas as mulheres solteiras - e possivelmente por todos os homens que agora se perguntam se a namorada foi mesmo dormir às dez da noite no sábado ou se partiu para outros braços em outra festa -, nada de bom jamais acontecerá pra você. Deus dá, Deus toma!

Você me deu muito pouca informação pra opinar sobre qual seria o azarão ideal pra você. Se você é do tipo que acorda cedo, deve ficar com o carinha do jantar às sete no sábado. É um pouco careta sair às sete em qualquer dia da semana, mas ao mesmo tempo é bastante esperto: nesse horário, você nunca enfrentará filas nos restaurantes desta cidade - exceto se resolver jantar durante o Rio Restaurant Week -, mas é igualmente provável que o chef ainda não tenha chegado na casa e que você tenha de se entupir de couvert até que a comida seja servida depois das nove. Noves fora zero, acho mesmo que o cara das sete é a melhor opção pra você, porque é só aí que encontramos um candidato à sua altura: classudo, esperto, malandrão e que provavelmente sai com outra garota depois que te deixa em casa, às dez. Eu, por exemplo, só saio por volta desse horário. Pano rápido.

Pode deixar que se ele sair comigo, eu te aviso por e-mail.

beijinhos estalados no ar com o veneno escorrendo pelos cantinhos,

sua grande amiga, Van'Or

quinta-feira, maio 14, 2009

ONCE: Falling Slowly

Ontem assisti "Once" (2006), um filminho irlandês super delicado com uma das trilhas sonoras mais tocantes que eu conheço. Recomendação da Marina que agora eu passo adiante - com guirlandas de flores e beijinhos suaves - a todas as pessoas que adoro.

quarta-feira, maio 13, 2009

Profissão: atriz (ou "In her shoes")

Arrumei um novo brinquedo no meio dessa angustiante vontade de trocar de vida: o fingimento.

Eu posso não ter feito Tablado nem ter passado meus verões adolescentes mergulhando no teatro da C.A.L., mas - ainda assim -, eu sempre me senti um pouco atriz. Uma grossa veia dramática sempre latejou em minh'alma e, talvez por isso, toda vez que eu chorava copiosamente por alguma coisa semi-importante que eu certamente esqueceria dentro de cinco minutos, eu aproveitava o efêmero derramamento caudaloso de lágrimas para verificar, na frente do espelho, como eu ficava chorando (e então estudar o meu melhor ângulo pra esse tipo de cena). Depois de décadas de laboratório, percebi que chorar não favorece minha beleza tanto assim, e por isso eu tenho evitado chorar na frente de homens solteiros interessantes e potencialmente viáveis, porque se não está fácil pra ninguém, a coisa fica ainda pior quando a gente enfeia.

Então eu decidi ontem que ia fingir ser outra pessoa. Ou melhor: que ia fingir ser eu mesma, mas sendo outra pessoa. Uma pessoa inédita e deslumbrada, recém chegada à minha vida e 100% entusiasmada com tudo aquilo de que eu abriria mão sem piscar pra ter uma outra vida, completamente diferente. Pra ser camareira num transatlântico. Ou pra ser correspondente de turismo no Cazaquistão.

Não sei se vocês estão me acompanhando quando eu digo que queria fingir ser eu mesma na pele de outra pessoa. Confesso que eu mesma fiquei um pouco zonza quando tive esses pensamentos espiralados às seis da manhã de ontem, mas na verdade o brinquedo era simples: eu faria o papel de mim mesma, só que essa nova "eu" acharia o máximo ser... bem, eu. Expliquei para minha aspirante ao estrelato seu novo papel:

É muito simples, baby. Você será Vanessa Ornella, uma veterinária carioca bonita, gostosa e famosérrima (mas só entre os seus); funcionária pública municipal lotada no departamento de clínica médica (maneirérrimo!) do único hospital veterinário municipal do Brasil (famosérrimo e chiquerérrimo!!!); corredora perspicaz (PS: há poucos adjetivos bacanas que eu posso usar ao lado da palavra "corredora" sem mentir muito) e yogin completamente dedicada ao seu crescimento espiritual através de um esforço diário para a eliminação do ego.


Eu disse "eliminação do ego"? Desculpe, tive de retirar esse pedaço da descrição do personagem, porque na verdade o personagem não consegue ignorar que a maioria dos seres humanos normais super estupraria, roubaria e até mataria para estar em seu lugar. As pessoas mais elevadas a invejariam por seus sapatos, sobretudo porque seus sapatos - reparem bem, eu criei o personagem e não descuidei do figurino - são estes:

As confortabilíssimas Birkens de cachorrinho que a Monikita-R me mandou da Alemanha (e que podem ser encomendadas aqui), que são da cor exata do lindo uniforme-figurino de médica veterinária que não só tem um corte perfeito, do tipo que valoriza o corpo sem precisar transformar a personagem na nova morena do Tchan, como também tem os bolsos bordados com patinhas de cachorro. Um verdadeiro luxo, digno de House, E.R. e, obviamente, Scrubs (que tem as médicas mais bem vestidas e excessivamente maquiadas da TV estadunidense).

Então eu expliquei tudo pra atriz que em mim reside e dei-lhe a importante tarefa de passar um dia inteirinho na pele desse deslumbrante personagem ficcional, a Vanessa Ornella. Antes de sair de casa, ela passou uma boa metade de hora em seu camarim fazendo uma sutil maquiagem cara-lavada (pra não incorrer no erro peruístico de Scrubs e nem tampouco deixar sua Vanessa Ornella com cara de reles mortal - "Porque um bom make-up põe pra fora a diva que há em você."), alisando o cabelo no secador pra encaracolá-lo em seguida (cachos cientificamente controlados por verdadeiros milagres cosméticos) e treinando o tom certo de voz para perguntar com um sorriso casual, da porta de seu consultório: "Quem é o próximo?". Porque este é o seu gancho pra entrar em cena.

A nova Vanessa Ornella entrou em cena 22 vezes naquele dia. Quem a via ali, correndo do consultório ao laboratório, do laboratório à cirurgia, da cirurgia ao Raio X (e nunca do consultório ao crematório, o que é de se admirar num mundo cão como este), realmente acreditava que aquela mulher tinha tudo: vocação, talento e amor aos animais. Alguns atores coadjuvantes não resistiam à emoção de contracenar com tamanha virtuose e lhe estendiam oferendas: sabonetes da Natura, bombons pra esperar o almoço e até uma caixa de morangos fresquíssimos por ter dado tanta atenção assim ao Dudu, ao Roque e à Shana. A atriz aceitava tudo prontamente porque era fiel a seu público, mas não se cansava de repetir uma de suas falas modestas prediletas: "Puxa vida, mas eu não fiz mais do que minha obrigação!"

Eu realmente acho que os atores se apegam a suas falas e direcionam suas vidas a situações em que elas possam sempre ser usadas. Um exemplo desse apego aconteceu justamente em algum momento entre a cena 15 e a 20, quando a trama apresentava, no cenário da sala de espera, uma família com um gato acompanhado duma carta de outro veterinário, com carimbo e tudo, explicando que aquele era um caso óbvio de eutanásia e solicitando que o colega (no caso, nossa heróina) cometesse o ato eutanásico em seu lugar. A família humana do gato, talvez motivada pelo calvário da peregrinação a diversos veterinários num momento tão difícil desses, queria justamente pular a preliminar e obrigatória etapa do atendimento clínico para ir direto à derradeira e mais extrema etapa da eutanásia. Nessa cena, a atriz gostou particularmente dessas falas:
- Se esse gato era paciente deste veterinário e ele achava que havia indicação de eutanásia, por que não a fez?
- Ah, porque isso é coisa que ele não faz!
- Meu amigo, eutanásia não tem reversão. Eu só posso preconizar uma eutanásia se conhecer o caso profundamente e estiver convencida de que não há chance de cura ou alívio.
- Mas aqui está o laudo atestando que não há cura!
- E não posso considerar o laudo de um veterinário que se recusa a oferecer assistência ou alívio a um animal em sofrimento. Entre na fila pra ser atendido, e então eu examinarei seu caso pessoalmente para formar a minha própria opinião.

Eu leio e releio esta cena e ainda não entendo bem o porquê, mas a platéia veio abaixo e ovacionou a heroína de pé. Pra falar a verdade, nesse episódio, os morangos e os bombons vieram logo depois dessa cena. Pensando bem, depois dessa cena, 3 figurantes e 2 coadjuvantes fizeram fila nos corredores do set de filmagem para perguntar à atriz onde ele tinha comprado aqueles sapatos.

Com sapatos como aqueles, imagino, é fácil ter uma vida glamourosa e fuderosa assim.

Marcadores:

segunda-feira, maio 11, 2009

5 auto-dicas pra tirar o pé da lama

1. Ignore a recomendação médica de alternar os treinos e corra todos os dias até se sentir melhor. Se não for pra nadar em endorfinas, que seja pra fugir dos fantasmas que habitam esse lamaçal (e corra em cenários lindos tipicamente cariocas pra fantasiar que muita gente mataria pra estar em seu lugar);

2. Controle seus pensamentos, como bem ensinou a Liana. Nos momentos mais difíceis, troque feras assassinas por bichinhos de pelúcia inertes e durma com eles;

3. Deixe o celular desligado por uma semana ou duas (e use o tempo extra pra terminar de ler dois dos cinco livros que estão na pilha ao lado da cama há meses);

4. Respire como se estivesse numa aula de yoga. E na expiração, ponha pra fora todos os seus venenos;

5. Seja mais generosa com você mesma. Se tiver dificuldade nisso, imagine que você é simplesmente outra pessoa, uma pessoa qualquer. E depois se perdoe por perceber que dá aos outros muito mais do que dá a si (às vezes a gente precisa explorar os extremos pra encontrar o caminho do meio).

Marcadores:

Emboscada

Há uns dias que sinto a depressão me rondando, escancarando suas presas em minha direção, abafando os ruídos do mundo com o som de sua própria respiração de felino feroz, sugando todo o oxigênio do meu ar. Eu fico enroscada num canto bem quieta, na esperança de que ela não me veja, de que ela não me ataque, de que ela finalmente se canse, desista e vá embora atrás de outra caça, de outra alma penada.

O relógio range o arrastar dos segundos, dos minutos e dos dias, e eu sei que, enquanto espero, o tempo está passando, e o tempo perdido agora não será recuperado jamais. Então eu fecho olhos pra enxergar melhor essa fera de pele macia que eu conheço tão bem, que me conhece tão bem, e chego mesmo a me deleitar com as memórias táteis de seu pelame sedoso, de seu calor frio, de seu abraço infinito que torna todas as dúvidas existenciais numa só certeza, a certeza de que só ela sabe, só ela tem a resposta, só ela encerra todas as dúvidas. A depressão é uma fera onipotente, e é quase impossível não idolatrá-la quando o cerco se aperta. É quase impossível não torcer pra que ela vença, porque ela é linda, ela sabe se mover, ela sabe a hora de chegar. Ao contrário de mim, ela sabe. Simplesmente sabe.

É uma emboscada, não tenho a menor dúvida. Estou completamente desarmada, nem um estilingue tenho pra me defender. Da parede do quarto, ouço o relógio arrastar sua montanha de segundos, seu enxame de dias e sua constelação de anos. Não quero lutar. É inútil lutar.

Só queria que o tempo parasse enquanto sucumbo, porque pode ser que um dia eu precise desse tempo. (talvez se eu ficar bem quieta, bem imóvel, ela desista de mim)

Marcadores:

domingo, maio 10, 2009

Socorro.

Ainda não sei o que quero ser quando crescer.

O quão grave isso pode ser às vésperas dos 37? Ou às vésperas de mais uma segunda-feira angustiante, rolo compressor demolidor de semanas, meses, anos e vida?

(Isso sempre me acontece depois de uma curta fase de alegria eufórica com a minha vida boa e simples. As ilusões, sobretudo as mais doces, calham de me envenar sempre à noite, pra que eu durma morta e acorde um zumbi.)

Marcadores:

quinta-feira, maio 07, 2009

Desejo

Acabo de ler isso num livro completamente mulherzinha e completamente delicioso, o "Comer, Rezar, Amar", de Elizabeth Gilbert:

"Ultimamente, quando me sinto sozinha, penso: Então fique sozinha, Liz. Aprenda a lidar com a solidão. Aprenda a conhecer a solidão. Acostume-se com ela, pela primeira vez na sua vida. Bem-vinda à experiência humana. Mas nunca mais use o corpo ou as emoções de outra pessoa como um modo de satisfazer seus próprios anseios não-realizados."

Então é só colocar numa balança o meu desejo - de um lado - e os meus anseios não realizados - de outro - pra decidir se é desejo, de fato, essa coisa alastrante que sinto por você.

O desejo primário seria absolutamente legítimo (porque afinal você é bonito, agradável, charmoso e interessante), mas como nem tudo é primariamente lindo, esse desejo ardente pode ser apenas um sinalizador da minha solidão, que nem é a maior do mundo, mas é consistente, incompreensivelmente dolorosa e deliciosa o suficiente pra me tornar dependente. E se eu me libertar da solidão, me diz: que outra droga potente eu usaria em seu lugar?

A verdade é que não sei - entre desejo e solidão - o que pesa mais. E enquanto eu não souber, sequer porei na balança questões éticas relativas ao seu status marital. Ao contrário do que você pensa, eu sou uma pessoa aquém da Ética: sou um organismo unicelular bastante basal.

Tudo o que preciso é de um pouco de água e sol, quiçá umas gotas de luar (e então meu desejo florescerá no solo fértil e sagrado da Solitude).

Marcadores:

terça-feira, maio 05, 2009

Rotina de uma mulher

Ela se olha no espelho, arruma o cabelo pela centésima vez, retoca o batom, lembra de passar perfume!, lembra de levar um casaquinho, esquece de alguma coisa e entra no elevador. Pega seu carro, entra num táxi, entra no carro dele, sobe na bicicleta, espera 15 minutos, morre de raiva, o faz esperar 15 minutos, pede desculpas, morre de vergonha e muda de assunto: pra onde vamos, então?

Senta na mesa, pede um chope, ri de um piada, não come porque está gorda, não come porque parou de comer carne, não come porque já jantou ou come porque está roxa de fome, porque não pode beber sem comer, porque comer é a melhor coisa do mundo, e ri de outra piada, conta uma ainda melhor, chora de uma história triste que acabou de lembrar, muda de assunto, pergunta se a maquiagem borrou, pede um cosmopolitan, pede uma caipiroska de morango, uma de kiwi, uma de abacaxi, uma de tangerina, desce outra sangria, capricha no mojito, capricha no martini de lichia, mas onde é que eu estava mesmo? Ah, falando do meu ex-namorado! De repente acha o cara ali, na sua frente, irresistivelmente bonito naquela camisa vermelha, naquela camisa listrada, naquela camisa amarela, naquele macacão jeans, naquele black jeans rasgado, naquela camisa de linho com aquela sandália de couro. Talvez ele seja tão charmoso porque é alto demais, ou baixinho, ou porque tem cara de cachorrinho, ou porque é careca, ou narigudo, ou tímido, ou desgrenhado, ou desligado, ou inteligente, ou cabeludo, ou porque tem um ar blasé, ou porque escreve poesia, ou porque toca violão, ou porque toca bateria, ou porque toca piano, ou porque toca baixo ou porque tem uma banda chamada Juke Box que faz sucesso na Bahia. Onde é que eu estava mesmo? Fiquei olhando tanto pra você que perdi o fio da meada. Risos, mãos, olhares, pernas por baixo da mesa, corpos se querendo, corpos se comportando, corpos se comportando muito mal em público. Uma pausa pra ir ao ladies' uma, duas, três, cinco vezes, e se eu precisar ir de novo, que seja em casa, acho que já bebi demais, acho que já saí demais, acho que já gostei demais, acho que quebrei a cara demais.

Foi bom conhecer você, como eu faço pra te ver de novo, amanhã vai fazer o quê?, te ligo amanhã, a gente se vê, a gente se fala, a gente não se fala, melhor a gente não se ver mais, eu ainda gosto de outra pessoa, eu ainda estou com outra pessoa, eu gostei de você e queria te ver mesmo assim, quero ser seu amigo, acho que podemos ser amigos, acho que podemos curtir, acho que você é a mulher da minha vida, não sei o que quero da vida, me diz o que eu devo fazer!

Chega em casa, lava o rosto, se gosta no espelho, escova os dentes, sente amor-próprio, sente alegria, joga no cesto a roupa impregnada do cigarro dos outros, sente nojo, sente um vazio, sente cansaço, procura seu amor próprio no cesto e não encontra, vai se deitar. Amanhã começa tudo de novo: um novo rosto, um novo discurso, uma nova abordagem, mas tudo enfadonhamente velho, tudo insuportavelmente igual.

- Me vê o de sempre, Sam.
- É pra já!

Marcadores:

Pacífico


Quando entrei naquele barco, sabia que o objetivo do passeio era mergulhar. Apnéia mesmo, o mergulho in natura só com aquilo que Deus nos deu (e um pé de pato - que Deus deu pros patos, por exemplo, mas esqueceu de dar pra gente - e uma máscara com snorkel, que Deus embutiu em algumas espécies marinhas, mas esqueceu de embutir na gente). Só tinha um detalhe: minha fobia de peixe. Eu tento ser racional em relação a isso, afinal acho o mar duma lindeza ímpar e eu não queria me afastar dele só por causa do meu exótico pânico de ser tocada por peixes sob a água. Foi nesse clima "mar-amado" que eu entrei no barquinho disposta a encarar meus medos de frente. E lutar, se preciso fosse, com os peixes do Oceano Pacífico.

Uma hora até chegar no ponto em que mergulharíamos. O Pacífico é um oceano um tanto quanto nervoso, então o barco ia quicando de um lado pro outro, e eu pensava: aqui não, aqui não, aqui talvez? Não, o barco seguiu, aqui o mar está mexido demais pra gente mergulhar, então aqui não. Aqui talvez? - e olhava pro barqueiro pra tentar interpretar seu cenho - Hum, sei... aqui não. Até que o barco parou num lugar que eu tinha acabado de classificar como "aqui, definitivamente, não, porque exatamente neste ponto a água passou de azul marinho a negro, então a profundidade deve ser favorável à presença não de peixinhos curiosos que podem querer se aproximar de mim, mas de monstros marinhos pré-históricos que estão há nove séculos aguardando um pernecho com o formato do meu". Quando a gente mergulha de snorkel, a gente quer um lugarzinho mais raso, né? Afinal, pegamos máscara, pé de pato e até um canudo emprestado de Deus, mas isso não transforma ninguém em golfinho. Fiquei indignada com o local escolhido pelo barqueiro. Queria dizer "Peralá, meu amigo, seja razoável: o senhor não acha que aqui seremos impiedosamente devorados por monstros marinhos?" Mas vai dizer isso em espanhol sem falar espanhol! Quando eu estava quase chegando a um elaborado protesto no meu melhor portunhol, percebi que era a única - de um grupo de doze - que ainda estava no barco chupando o dedão. Então eu fiz o sinal da cruz - porque eu fico subitamente religiosa nesses momentos - olhei pro negrume das águas nada pacíficas e pedi: "Deus, não deixa esse monstro acordar agora! Deixa eu sai da água primeiro, porque eu tenho uma necessidade inexplicável de ver aquilo que está me devorando." Deus ouviu minha prece com enfado e fez com a mãozona: Vai, minha filha, pula logo. E eu pulei.

Não achei a água tão fria. Estava fria, mas não tanto quanto eu imaginei que seria num ponto negro do Pacífico. Cuspi na máscara e apliquei-a ao rosto. Enfiei a cara na água e vi: azul, azul, azul. Outro lado: azul, azul, azul. Tá certo que não era simplesmente um azul como qualquer outro: era um monte de azul serpenteado por raios refratados de luz. Girei 360 graus: nenhum peixe à vista. Era pra eu ficar triste, afinal estava ali pra ver coisas debaixo da água, mas fiquei extremamente feliz por não ter de encarar minha fobia dessa vez. Tenho certeza de que há peixes no Oceano Pacífico, mas acho que Deus foi super generoso comigo quando desviou todos os cardumes um pouquinho pra lá. Senti-me divinamente mimada, e olha que eu nem mereço tanto. Olhei em volta e estavam todos os turistas do meu barco espalhados em pontos distantes, talvez procurando os peixes que eu adorava evitar. Um deles emergiu aos gritos de "Que merda, não dá pra ver merda alguma nessa porra de lugar fodido!" Acho que em português a gente nunca usaria tantos palavrões numa só frase, mas eu desconfio que palavrão em português tem peso três, ao passo que em inglês tem peso um.

Eu me senti ótima porque não estava reclamando de nada. Eu sei, eu pensei em reclamar, mas não reclamei efetivamente, e isso me deu uma inédita sensação de superioridade: não reclamei, não xinguei e até gostei de não ver peixe algum. Na verdade, estava extremamente satisfeita por estar ainda, dez minutos depois, com as minhas pernas e braços intactos, porque afinal, aquelas águas são conhecidas por seus cardumes vorazes de tubarões.

O mergulho ia durar meia hora, quarenta minutos, e eu ainda tinha muito tempo pra matar. Não ia nadar até o ponto em que estavam os outros malucos, porque ali, sim, provavelmente haveria peixes. Depois eu pensei que, se eu fosse um peixe e visse um cardume assustador de gente, o que faria? Ora, nadaria pra bem longe dali! E bem longe dali, quem estava? Eu. Então eu nadei até as pessoas pra que os peixes não me encontrassem, mas juntei-me ao grupo contrariada, pensando na burrice dos peixes: com tanto lugar pra fugir - afinal, caramba, aquilo ali é um oceano, e não um oceanário! - eles tinham justamente que fugir na minha direção? Até que entendi porque a galera se reuniu naquele ponto: porque ali, alguns metros abaixo, o sol encontrava uma pedra clara, que refletia a luz e iluminava o fundo. Se a gente fechasse um olho, dava pra ter até a sensação de que a rocha, a base submersa da ilha, estava ao alcance da mão. Não estava. Todos tentavam descer até ver alguma forma de vida próxima à rocha luminosa. E todos subiam frustrados com sua condição de humanos ridículos, dotados de tímpanos que explodem, e pulmões que não respiram debaixo d'água.

Cansada de tentar me aproximar da grande rocha branca, que parecia estranhamente mais próxima da gente do que estava de fato, eu resolvi flutuar no Pacífico. Entreguei meu corpo ao mar com uma tranquilidade inédita, porque era minha primeira vez num oceano sem peixes. Então eu me vi de cima e percebi que eu não estava no oceano, e sim numa gota, que por sua vez estava dentro de outra gota, que estava dentro de outra, e infinitamente muitas outras, até seu invólucro final: o oceano. E este, sim, tinha uma quantidade expressiva de peixes que se riam da minha ingenuidade.

Foi aí que eu me entendi meu estranho orgulho de ser a única de doze a não reclamar de nada: há sempre algo muito maior que a gotinha que elegemos pra fazer tempestade em copo d'água, e quem se dispõe a explorar as incontáveis camadas que separam nossa pequenez da Grandeza que nunca se alcança com a mão (mas ainda assim nos brinda com a sensação de que é possível), sempre encontra no caminho uma pista pra felicidade.

segunda-feira, maio 04, 2009

Hoje é meu dia de sorte!

Acabo de encontrar as fotos perdidas mais desejadas da minha vida! Eu sempre acreditei que elas estavam em algum back-up maluco desses que eu faço, mas há dois anos que eu procuro esta pasta e nunca que encontrava.

Estava com o esquisito nome de "Receitas de drinks" no subdiretório "vodka". Que isto sirva de lição pra gente que nomeia arquivos no meio de uma aula estendida do curso de bartender.

domingo, maio 03, 2009

Considerações finais sobre o final das férias

Minha vida é boa e simples porque eu sou carioca, flamenguista e tenho talento pra ver o lado bom de todas as coisas.

Mas trocaria de bom grado meu décimo terceiro salário por um mês extra de férias por ano. 30 dias é surreal.

sexta-feira, maio 01, 2009

Será um pesadelo se tornando realidade?

Deu no Scientific American: Egito resolveu exterminar todo seu rebanho suíno para se "proteger" (couf, couf) da gripe "dita" suína. Acho que eles andaram recebendo muitos e-mails como os que eu recebi e acabaram sugestionados. E eu que achei que existia vida inteligente no Egito. Tsc, tsc.

Will Egypt's plans to kill pigs protect it from swine flu -- sorry, H1N1 flu?: Scientific American Blog

Posted using ShareThis

Fragmento

Aquela não era a vida com que sempre tinha sonhado. Pensando bem, passou muito pouco tempo sonhando desde que sua vida começou, e começou quando mesmo? Ah, sim: quando precisou pagar sua primeira conta. Isso não quer dizer que ela tenha se tornado uma mulher amargurada pela vida, e sim uma mulher realista, do tipo que tem os oito pés fincados na terra, como um polvo-humano que caminha, paga contas e usa a ponta de cada um de seus tentáculos para conter infiltrações e buracos que vão se formando no teto de cristal com uma vista cada vez mais embaçada pro céu estrelado e pros sonhos que deveras acalentou. Eram sonhos de quê? Ela sequer se lembrava. Ou lembrava vagamente dos personagens, de alguns cenários, de uma casinha com paredes e janelas brancas e um vaso de flores amarelas sobre a mesa de jantar. Ela sonhava com uma mesa de jantar bem no meio do sala, uma mesa com quatro assentos, porque em seus sonhos antigos, havia sempre... Bem, que besteira. Ela sentia vergonha de si mesma quando pensava nisso, mas a verdade é que já sonhou em ter uma família com mamãe, papai e filhinhos. E um cachorro. E uma vaca chamada Clementina. Algumas galinhas, talvez. E flores amarelas sobre a mesa da sala branca divinamente aromatizada pelo café fresquinho, saindo lá da cozinha na doce companhia de bolinhos de chuva.

Talvez o céu seja assim. Mas quem, hoje em dia, consegue olhar pro firmamento e vislumbrar o céu? Tudo que se vê é um misto de estrelas e sonhos esquecidos ou destruídos pelo caminho. Há tantos anos que tinha parado de sonhar que chegava a reprimir um sorriso de contentamento quando se lembrava dessas pieguices. A memória de uma extinta capacidade de sonhar, de alguma forma muito estranha, a aproximava das outras pessoas. Das pessoas normais que, ao contrário dela, existiam sem doer.


Ela nunca soube como as pessoas normais faziam pra existir sem doer. Talvez todos mintam, ou talvez algumas pessoas sejam simplesmente mais distraídas pra dor do que outras. Talvez haja, de fato, aquelas que não sentem nada e acham tudo fácil, simples e natural. Essas pessoas talvez nem sonhem, porque a vida delas deve ser um sonho acordado, e é possível que tenham salas brancas com vasos repletos de flores sobre a suntuosa mesa de jantar com todos os seus oito assentos. Ela tinha, em contrapartida, oito braços prontos para lutar contra essas fraquezas. Não era doce, não era adorável e não sabia entregar seu coração a ninguém. Mas se orgulhava de pensar que era forte.



Eu tenho um carinho especial por essa moça. Se eu entrasse numa briga, era ela quem eu gostaria de ter ao meu lado. Se entrasse num labirinto-caverna escuro, sem lanterna e sem noção, tenho certeza de que ela me mandaria calar a boca pra poder pensar, e então agarraria minha mão pelo pulso, pra não ter de entrelaçar os dedos aos meus, e diria: é por aqui. E em poucos minutos a gente estaria fora. Mas fazer o quê se ela não pode ser gostada! Fazer o quê se ela trancou o coração e jogou a chave no fundo do oceano? Eu gosto dela secretamente ainda assim, porque já foi capaz de sonhar um dia; porque me acha superficial e ridícula (só porque eu não sei da missa um terço, porque minha vida é fácil, porque tudo pra mim é simples - e isso nem é verdade) e porque eu ainda tenho esperança de que um dia vou aprender com ela a sair dessa caverna sem me desesperar; que um dia eu vou aprender a calar minha mente pra conseguir ouvir a solução, e então eu vou descobrir que também tenho oito patas pra correr mais rápido, oito braços pra lutar mais ferozmente e oito pernas pra fincar no chão toda vez que estiver com medo de enlouquecer.

Porque a vida de ninguém é fácil e nem nada é simples pra pessoa alguma, só que algumas pessoas, porque são tão difíceis e tão ferozes, e porque combatem tão intensamente tudo aquilo que se convencionou associar à felicidade, têm o talento especial de despertar a estranha inveja de sermos nós mesmos. O carinho que sinto por essa moça é inversamente proporcional à minha vontade de ser como ela, mas que eu queria, eu queria: poder aprender com ela a sair dessa caverna. Ou controlar meu desespero pra ficar até que eu consiga ouvir claramente a solução.

Marcadores: